quarta-feira, setembro 07, 2005

Cantiga do neno do e-mail

Digo sempre para meus alunos que eles são de uma geração epistolar. Isso quer dizer que, se São Paulo vivesse hoje e contasse a mesma idade que tinha quando foi assombrado pela boa-nova na curvinha do estradão, teríamos então E-Mails de São Paulo aos Romanos, ou aos Tessalonicenses, ou aos Belo-Horizontinos. Eu, depois de entrar de um modo a bem dizer definitivo nessa onda chamada virtual - e é preciso repensar este adjetivo de dois gêneros para aquilo que estamos fazendo na web! - eu sigo dando passos e tomando sustos.

Ao criar este blog, uma das paulinas com quem convivo cotidianamente tanto na rede quanto no calor da hora de uma sala de aula, a garota Thaís Palhares, reclamou logo: "-Pô, Edmundo, você precisa liberar os comentários!" Não sabia que precisava. Mas, avisado que fui, tratei logo de fazê-lo. E o resultado aqui está. Aqui mesmo, neste espaço confessional. Recebi alguns posts anônimos. Não entendi nonada.

Curioso, ainda tive a boa fé de responder a um deles, pedindo à pessoa que se declarasse. Inútil. São Paulo, hoje, pode se dar ao luxo de escrever idéias e não se identificar. Melhor: assim, não é preso. No entanto, das mensagens recebidas, uma me deixou feliz. Tratava-se de uma poesia. Um poema de Federico García Lorca, escrito no melhor galego. Lembrou-me logo um professor que tive em Bilbao, natural de "A Estrada", uma cidadezinha que fica entre Pontevedra e Santiago de Compostela.

Depois das aulas, tomando cañas num botequim, ele me disse esse mesmo poema. Na hora, achei que o prof estava querendo agradar seu aluno brasileiro, tentando traduzir a poesia do castellano para o português. Não. Era uma outra língua e eu fazia meu primeiro contato com o galego, um idioma que também possui a palavra saudade. Fiquei maravilhado. Agora, ainda com a boa-nova anônima na cabeça, sou mesmo capaz de ouvir José Luiz, o professor, declamando Federico, o poeta.

Quanta saudade! Minha filha Lu está aqui a meu lado, fazendo costurinhas. Acabamos de chegar do almoço e, no caminho, na porta de um edifício da avenida Augusto de Lima, vimos uns pombos na gaiola. Maria Luiza me perguntou porque eles estavam presos. Como eu, que não conhecia o galego, minha filha ainda não havia visto um pombo preso. Inventei logo: "-São pombos-correio". Lu também não sabia o que era esta espécie de bichos. Outra vez, inventei: "-São pombos que levam e-mails".

O papo continuou. Continuou e eu agora estou aqui pensando nos desígnios de Deus e da natureza. Em São Paulo e nos pombos anônimos. Não dá pra ser absoluto em nada mesmo neste nosso mundo de teias de aranha. Um mundo velho como uma cartinha e jovem como um e-mail. Entre uma idéia e outra, ainda escuto, absorto e oceânico, a boa-nova da poesia de Federico. Tudo se mistura na teia.


Tudo.

CANTIGA DO NENO DA TENDA
-Federico García Lorca

Bos Aires ten unha gaita
sobro do Río da Prata,
que a toca o vento do norde
coa súa gris boca mollada.
¡Triste Ramón de Sismundi!
Aló, na rúa Esmeralda,
basoira que te basoira
polvo d’estantes e caixas.
Ao longo das rúas infindas
os galegos paseia
bansoñando un val imposibel
na verde riba da pampa.
¡Triste Ramón de Sismundi!
Sinteu a muiñeira d’agoa
mentras sete bois de lúa
pacían na súa lembranza.
Foise pra veira do río,
veira do Río da Prata.
Sauces e cabalos múos
creban o vidro das ágoas.
Non atopou o xemido
malencónico da gaita,
non víu o imenso gaiteiro
coa boca frolida d’alas;
triste Ramón de Sismundi,
veira do Río da Prata,
víu na tarde amortecida
bermello muro de lama.

4 comentários:

Anônimo disse...

O anonimato torna as coisas mais interessantes... acredite

Anônimo disse...

To aqui pensando no pombo-correio que não me trouxe nenhum e-mail porque tá preso na gaiola...
To aqui pensando na inocência de ser criança e fazer costurinhas.. minha vida, se remendada, talvez fosse mais fácil, talvez mais colorida...
To aqui pensando no efeito em cadeia e nos notáveis anonimos ou nos que tem rosto e passam despercebidos...
To aqui pensando e a culpa é sua!!!
Que mundo cão! Que virtualidade vã...

Anônimo disse...

Anônima, você acha isso mesmo?

Anônimo disse...

Foi hoje minha primeira visita aqui (14/set). Adorei! Já tá salvo nos 'favoritos'! Sua ex-aluna, Maria do Carmo.