segunda-feira, novembro 13, 2006

Édipo: acasos de uma leitura heterodoxa

Hoje, quando se olha para trás, e até mesmo para a frente, é quase impossível não enxergar nossa herança e nosso futuro gregos. Assim como é difícil não percebermos a condição trágica do humano. O que Édipo faz, e o vem fazendo desde que foi inventado, é colocar esta tragicidade a dois palmos de nossa cara para, ainda assim, não conseguirmos compreendê-la em toda sua essência. Também nós, por julgarmos muito saber, mal sabemos.

Tratar essa herança, este espólio helênico, de modo crítico tem sido o desafio de quem, com maior ou menor intensidade, pensa, com alguma esperança, este ser humano marcado pela dor trágica. Nesse sentido, a idéia que aqui se tentou propor – ou seja: tentar ver em maiores detalhes como foi pintada a ânfora de San Gimignano – vem como reflexo mesmo dessa disposição de enxergar o mundo com um olhar mais terno.

Com a mais absoluta sinceridade, a grande pergunta que me assaltou no processo de escritura tanto desta dissertação como da situação dramática que lhe faz apêndice, é desconcertante. Para quê? Qual o sentido prático mais razoável, num mundo em que torres são derrubadas por aviões cheios de gente e crianças são atingidas por mísseis a todo o tempo, qual o sentido em tentar afirmar que existe algo por trás do vaso de cerâmica?

Ainda não sei. Sei apenas que este projeto também ainda não acabou. Ao me dedicar a pensar o tema, pude perceber quantas coisas mais foram urdidas sobre o assunto. Édipos reinventados por Corneille, Voltaire, Höderlin, Ducis, Platen, Jean Cocteau, Stravinski, Gide, Bernardo Santareno, Robbe-Grillet, e nenhum deles analisado mesmo que superficialmente por este trabalho. Aqui creio estar, sem dúvida, matéria para várias vidas em busca do melhor entendimento sobre o barro e os pigmentos que deram forma e aparência ao sujeito que se ampara no bastão, à esfinge que está bem a sua frente, à mulher que o espera sem nunca ter deixado que ele se fosse.

Assim, o que pude perceber é que – mesmo que o estudo que fiz possa ser considerado completamente inútil, e que a tentativa de escrever um drama sobre assunto tão sério seja tida como uma pretensão imperdoável de minha parte – mesmo que tudo isso seja verdade, uma coisa é certa: Édipo e Jocasta somos cada um de nós.

Tal conclusão pode parecer óbvia e itinerante, mas não posso deixar de senti-la como talvez a única verdade percebida neste meu esforço que tramou reunir criação dramática e hermenêutica. Sim. A sensação é de que aquela criança que foi entregue ao carrasco somos nós. E de que a mulher que a entrega para que morra no alto de um morro também somos nós.

E é por isso que andamos todos e cada um de nós por aí a assassinar pais, a desvendar charadas, a dormir com filhos, a derrubar edifícios, a sermos atingidos por mísseis, a nos enforcarmos, a cultivar nossa própria cegueira. O fato é que, mesmo sendo, não damos conta de saber o que significa sermos Jocastas e Édipos. E também não sabemos a partir de quais significantes a ânfora de San Gimignano pode ser melhor apreciada. Há realmente uma linguagem masculina e apolínea que nos faz enxergar o mundo por determinado prisma? Em contraposição a esta ordem, existe uma outra que lhe subverte e, intrometendo-se em seus códigos, é capaz de mudar-lhe o sentido?

Não me recordo onde li que Ulisses, o herói grego, arava a areia de uma praia deserta. No entanto, esta imagem ficou em minha cabeça desde então, como se fosse o contraponto do Édipo que é entregue ao verdugo e da Jocasta que, depois de entregá-lo, põe-se a esperar. Por isso, ainda me pego consultando verbetes de dicionários e a fazer pesquisas na internet. Talvez, num arroubo dionisíaco que, por que não?, só Freud pode explicar, tenha inventado para Ulisses esta cena.

Mas, ainda hoje, tal idéia – a de um homem arando algo que não faz sentido arar – não sai de meus pensamentos. O que me parece é que, de uma ou outra forma, o viril e astuto herói de Ítaca se redime de todas as guerras e mortes que pesam em suas costas ao cultivar a areia da praia. Posso até mesmo ver a figura consumida de um anĕr velho e cansado das batalhas de Tróia, ou de suas odisséias pela Trácia, enxugando o suor que lhe goteja do rosto, tendo o Egeu como fundo. O lugar poderia ser a ilha de Éolo, e nosso herói parou apenas um instante, a fim de recuperar suas forças para voltar a correr a charrua pela parte da praia que ainda falta ser sulcada.

O que imagino é que, com esse trabalho trepidantemente estéril, Ulisses também tenha procurado se redimir dos longos anos em que deixou sua Penélope a tecer e destecer a mortalha de Laerte. A vida entre as gentes, sobretudo hoje, em que os fios da harmonia parecem completamente perdidos da meada, revela-nos sempre algo desse Ulisses que lavra o infértil e dessa Penélope que espera fiando e desfiando. Desse Édipo que mata o pai para depois tomar seu lugar e dessa Jocasta que manda matar para, em seguida, desejar a volta.

Explico. Enxergar o outro, creio, é avistar-nos a nós mesmos. Esperamos do outro não aquilo que ele é, mas o que queremos que ele seja ou o que nós próprios gostaríamos de ser. Por isso, as odisséias nos relacionamentos. Por isso, o tecido que deve ser desfeito a cada noite. Por isso, talvez, tentar ver Édipos e Jocastas a partir de outras miradas.

Acredito também que é para manter vivas suas esperanças de encontrar seu Ulisses que Penélope desfaz a mortalha que fiou. É para redescobrir sua Penélope que Ulisses lavra um solo que jamais poderá dar frutos. Então, e isso parece terrível, o que avistamos no outro é nossa própria esterilidade e, com medo dela, enlouquecemos na espera e no áspero.

No fundo, em cada circunstância de encontro nesse nosso mundo grego e precário, também rogamos descobrir Penélopes e Ulisses, Jocastas e Édipos. Mulheres capazes de arar o inútil e homens capazes de tecer o que no dia seguinte deverá ser refeito. Naquilo que buscamos, acredito que o que sempre irá durar é mesmo a chama essencial. Aquela chama que arde e que não vemos, como lembra Camões. Assim é o Ulisses que também espera, talvez para se redimir de quem por ele arou o impróprio. Assim, a Penélope que venceu guerras e moeu o áspero, talvez para se perdoar de quem por ela passou as noites desfiando. Assim, a espera. Assim, a criação literária. Assim, a recriação científica. Arar, fiar, desfiar e pensar podem ser mesmo aquilo para o qual não encontraremos nunca explicação. E para o qual talvez não estejamos mesmo preparados. Assim, Jocastas. Assim, Édipos.

Assim, nós.
-Esta é a conclusão da minha dissertação, defendida no último 27 de outubro.

sexta-feira, novembro 03, 2006

O vômito da aluninha

Odeio as palavras. Esse poder que elas têm é mais que tudo, mais que todos, e isso é surreal. Eu as odeio porque elas entram em mim mas não saem. Por causa delas e só delas, não consigo fazer com que nenhum ato comunicativo meu seja completo. Elas parecem só ter uma via pra mim. Mão única. E passam, me atropelando e buzinando, como se não me vissem andar pela calçada, à margem do alcance delas. Mas não estou à margem nem fora do alcance dessas subjetivas, simbólicas, endiabradas e angelicais palavras. Elas me arruinaram porque não me deixaram que as usasse, antes pelo contrário – elas me usam e fazem de mim o que bem querem. Sou uma bêbada equilibrista, tentando catar umas poucas palavras para as sorver em goles amargos. E ser mais louca ainda tentando compreendê-las e dissecá-las. Deve ser por isso que nos odiamos tanto. Elas não me deixam que as entenda e em troca pelo meu atrevimento, não deixam que eu seja entendida por ninguém. Elas se fazem de boazinhas e deixam que nós (pobres seres humanos, cativos ao poder dessas Medeias) nos compreendamos por elas pra depois tirar da gente todo entendimento. Prozac, guerras, fome, isolamento, solidão. Pra isso elas não prestam, pra ajudar a resolver isso elas não prestam. São umas preguiçosas.
Nunca consigo usá-las do jeito que quero e por isso as odeio. São umas emprestáveis, preguiçosas, cínicas e falsas. Quando você pensa que elas são suas amigas, é melhor tomar cuidado: é só uma armadilha pra que te dêem o bote. Pra que depois você não consiga se desenredar delas. Pra ficar como eu: dependente químico, biológico, psicológico e lógico de palavras, e amá-las mais que a vida apesar de odiá-las mais que à morte. Elas são mesmo um bando de filhas da puta. Ah, se eu fosse uma palavra!... Acho que ia pensar mais ou menos assim:
Louca
Nua
Pouca
Crua
Sou uma palavra nojenta e desvairada,
Que te espanta no seu ócio e no seu hiato criativo
E você, ser humano... (idiota!)
Não passará e não conseguirá nada sem antes ter o meu crivo.
No meu trono me assento e dele me levanto,
Faço dele o uso que quiser
Porque na verdade meu trono
É a cabeça de quem lá dentro me puser.
-Texto de Meghie Rodrigues, minha aluna do 6° período de Jornalismo.

quarta-feira, novembro 01, 2006

Prayer

Fake com Deus. Amém.