sexta-feira, março 23, 2007

Crítica

Atrás dos olhos das meninas sérias:
Falar, um romance de amor e de ódio

Adaptada do premiado livro “Falar”, de Edmundo de Novaes Gomes, em Porto Alegre, 2003, a peça produzida pela Cia. Pierrot Lunar, e realizada por toda uma equipe mineira reconhecida é, no mínimo, um desafio ao público.

Desafio à platéia na sua capacidade de sustentar um espaço de angústia, de expectativa suspensa. Desafio pelo defrontamento com um espaço restrito e absolutamente ilimitado, asfixiante, de um lamaçal de contornos invisíveis.

A obra, em aberto, logo na primeira fala da personagem Ana, suscita, já, então, horror e fascínio e faz vislumbrar o clima cênico em que a peça se passará.

Paixão e tragédia, masoquismo primário e ódio primordial, excessos brutalmente respingados na platéia, na condição de um falar cotidiano, vulgar, no sentido do comum, do vulgo, dos nomes dados aos objetos e ao gozo, descarnados de seus eufemismos possíveis ou de um romantismo às vezes até aguardado, quem sabe, pelo espectador. Espera vã.

Verdade é que, salpicados a modo de tempero, para que se suporte a opacidade da repetição angustiosa do real, momentos de humor, que é sempre negro, surgem de quando em quando.

Colocam-se, de um lado o sujeito significante, exigido de um lugar de morte, de não sentido, tentando, através das palavras, articular o que está mais além do sentido, o exílio do indizível, o impossível do sentido e a Mulher, a morte, o gozo, a natureza e Deus, portanto a possibilidade de fazer valer a vida.

“Falar, falar, falar. Todo mundo fala, fala, fala. Por isso, agora também resolvi falar, falar, falar. Falar pelos cotovelos. Falar à beça. Falar à vontade. Falar contra a vontade. Falar até. Falar de mim. Falar de você. Falar de amor.”

“Foi aí que te vi pela primeira vez e. hoje, a única coisa que me dói é eu poder prever o destino e saber, saber seguro mesmo quando vai ser a última”.

“A gente tínhamos 19 anos. Você tomou o café e alguém cantava que tudo era inútil. E, para mim, isso agora tem um significado tremendo, absurdo. A inutilidade das coisas, a minha inutilidade, a inutilidade da vida. Será que é possível descobrir alguma coisa nesta lama toda?”

Daí se advinha o horizonte da peça, aparentada de Medéia. A cólera de uma mulher traída pelo marido, transportada, de fala em fala, em tempo atemporal, tempo do inconsciente, associação livre, enquanto direcionada, desde o início pela construção fantasmática de sua vingança, destilada, palavra por palavra, ponto a ponto, furando, passo a passo, até o âmago, o abismo tentador e imperscrutável do gozo da morte, dele e dela.

Interessante que Ana se valha de Gurgel, o suicida, que ocupa o lugar da exceção, do “fora da lei”, daquele que pode testemunhar do precipício, da morte e do céu e de Deus, que não existem.

Gurgel, neste sentido, é um homem “mascarado”, talvez mulher, seu interlocutor na fantasia que perpassa toda a historia do assassinato do homem. Assassinato, diga-se, realizado com palavras que vão se depurando em cada atrocidade, em cada bem precioso arrancado do antigo amor, em cada mutilação infligida àquele que outrora lhe garantira o nome de mulher. Gurgel faria vezes do objeto em torno do qual a fantasia de morte de Ana pôde se construir?

Roubada que foi de seu ponto de apoio, quando “seuhomem”, que dentre outras a escolheu “uma”, o que garantia a Ana, um lugar e um nome no desejo dele; Ela que faceiramente de Ana, se percebeu “dona” Ana, não mais era dona de nada!

Sem terra, sem lugar, sem nome, sem nenhum gancho significante, sem pertinência simbólica, que restaria a ela?

Quando alguns definem a peça como “acertos de contas de um casal”, há que se pensar tal acerto de maneira mais ampla.

Não há como “acertar contas” quando se trata de casal.

Há mesmo que se perguntar se um “casal” existe a não ser no sentido “genérico” do homem e da mulher que tentam articular alguma relação possível, onde ela não existe.

Enquanto o amor é capaz de bordejar este abismo entre um homem e uma mulher, um amor referido a algum muro, algum limite, alguma lei que consiga, da pulsão mortífera, fabricar desejo, coisa útil, talvez um casal se possa pensar um “casal”.

Finalmente, as performances de Léo Quintão e Neise Neves são magníficas. Magníficas, porquanto capazes de nos colocarem a nós, espectadores, mais que ouvintes, mais ainda, no lugar incômodo de analisantes, enredados nas teias de uma paixão desmesurada, experimentando, mais além do simbólico, a ruptura transgressora do excesso e mostram que são atores capazes de nos levar, se o permitirmos, a esse lugar sem atributos da Mulher e da morte.

No princípio era o verbo.

Do original, “Falar”, à voz, percurso de um trabalho que merece ser visto!

-Angela Maria de Araújo Porto Furtado é psicanalista

quinta-feira, março 08, 2007

Cadela

Na primeira vez, foi assim: a menina delicada na cama. Ele por cima. Não aconteceu nada. A menina rebolava, passava a mão, carinhava. Nada. Na última vez foi assim: a mulher sensível segurou e disse Isso acontece. Levantou. Antes de entrar no banheiro, deu um sorrisinho pra ela. Fechou a porta. É claro que ele sabia que isto acontecia. Ficou na frente do espelho. Dizia. Bem baixinho.

Quase um sussurro.

Haikai

esta é a estréia:
um olho no palco,
outro na platéia.

Atrás dos olhos das meninas sérias

Estréia hoje a peça Atrás dos Olhos das Meninas Sérias, baseada no meu romance Falar. A direção é do meu querido Juarez Dias. No elenco, o casal Neise Neves e Léo Quintão. A dramaturgia é assinada pelos três. Veja os dados na publicidade logo acima.