terça-feira, janeiro 27, 2009

Se você me perguntar como tudo começou, não vou poder lhe dizer. Simplesmente não sei. Nem gosto. Além disso, o que posso perceber sentada aqui nesta poltroninha e olhando para a cara do senhor meu pai é que na minha vida as coisas acontecem como num flash-back. Tudo sem muita ordem. Uma vez, no cursinho, pediram que fizéssemos uma redação. O tema era algo como “O que você faria se tivesse uma máquina do tempo”. Lembro que escrevi que o único que iria fazer era ser eterno. Isso mesmo. Pensei na hora que, se houvesse a possibilidade de existir uma máquina desse tipo, tudo estaria mudado. Sim: acreditar que pode haver uma máquina do tempo é também acreditar que o tempo não há. Se você acha que um dia vão inventar uma coisa dessas, é porque você crê também que já inventaram, entende? Se ela vai existir no futuro, então ela já existe, porque o futuro já existe, o passado ainda existe, e o presente é isso que queremos enxergar na medida em que viajamos nela, nessa máquina do tempo que faz com que o próprio tempo não exista.

Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! É assim que me vejo agora, aqui, sentadinha nesta minha máquina do tempo que é esta poltroninha de hospital e vendo meu pai morrer, vendo esse homem respirando com dificuldades, vez ou outra tremendo as pernas de uma maneira terrível. Será que agora, por exemplo, com os seus olhos dele fechados, ele está inconsciente? Será que se lembra de que estou aqui, olhando para ele? Não. Deve estar dopado. Entupido das morfinas que lhe dão.

E, enquanto ele dorme, eu viajo em minha máquina. Ajeito um pouco meu pau no meio das pernas, pra que não faça volume na calcinha de algodão que estou usando, aproveito pra dar uma coçadinha, e sigo minha viagem. Olho para ele, arquejando barulhento em agonias e, de repente, não quero mais. Aperto então um botão da máquina e volto alguns anos. Sim. Lá estou eu, agora, em frente ao espelho de Isaura. Hoje, ela veio a mim pela manhã e disse que os dois teriam que ir ao casamento do filho de um colega dele.

Não. Não iriam me levar. Quando eu pergunto o porquê, ela se atrapalha e dá uma desculpa esfarrapada. Vamos chegar muito tarde. É um casamento com muitos amigos do seu pai. Cheio de adultos. Sem querer, minha mãe acaba dizendo a verdade. Não que o horário seja um empecilho para que eu vá à festa. O problema são os amigos dele. O senhor meu pai não quer que todos aqueles sujeitos, alguns que até estiveram com ele numa guerra de muitas mortes, vejam que o filhinho que ele teve já mais velho, depois de se casar cinquentão com aquela Isaurinha do interior, cruza as pernas como uma mocinha na hora de se sentar. Ou fala fazendo trejeitos. Muito educadinho, mas inventando movimentos involuntários com as mãos, com os braços e com a cabeça. Quando lhe perguntam alguma coisa, a voz lhe sai com uma delicadeza que não deixa dúvidas: Esse menino é uma bichinha, meu Deus! Como é que pode? Ainda não deve ter completado dez anos e parece uma menina, um veadinho que sequer dá conta de disfarçar o olhar. O ditado está mesmo certo: é de pequenino que se torce o pepino. Reparem só como ele mira os outros garotos. E como não dá conta de sair de perto das garotinhas. Na certa, o que realmente deseja é ser uma delas.

É por isso, e não por causa do horário, que não levarão o guri ao casamento do filho do amigo. Para que ele, o pai, não tenha que ficar constrangido quando lhe perguntarem É esse o rapazinho que você teve depois de velho? Para que ele não fique embaraçado quando elogiarem a beleza loira do seu guri, os olhos azuis com cílios enormes, os lábios encarnados contrastando com a pele alvíssima. Para que ele não se enrubesça ao notar como os demais meninos, quase todos eles incentivados pelos sussurros ao pé do ouvido dos adultos, isolam o pequeno efeminado das brincadeiras consideradas essencialmente masculinas. Para que, afinal, esse senhor desnorteado não tenha que mais uma vez se fazer a pergunta decisiva, ao ver o filho triste num canto, o olhar perdido nas outras crianças que se divertem correndo atrás dos balões coloridos. Uma indagação trepidante, alucinada, conclusiva, nervosa e tão verdadeira para ele, o pai, que muitos até se envergonhariam de simplesmente cogitá-la.

Por que não nasceu morto?