Me parece que, para dizer de narrativas delirantes sobre amor e existência, teríamos que falar de toda a literatura. Ou melhor, de toda criação literária. E aqui estamos enxergando a literatura como expressão daquilo que levamos dentro de nós e que somos capazes de revelar, em forma de arte, a partir de uma construção cerebral.
Pois é isso: acredito que toda literatura narra, no gênero que lhe é inerente, temas ligados ao amor e à existência. Ou o Quixote, esta novela inaugural que agora está completando 400 anos, não seria um delírio completo sobre a existência? E, bem antes de Cervantes, o Édipo de Sófocles, que esvazia o mito para em seguida preenchê-lo novamente, não nos diz de como é trágico tentar fugir do destino para, em seguida, perceber que não há o que fazer?
E por aí seguem as narrativas: um jagunço que ama o outro, em Rosa; um homem que delira uma traição, em Machado; uma menina que deita com seu livro na rede e faz amor pela primeira vez com ele, como conta Clarice. Todas estas me parecem, por assim dizer, narrativas de amor e existência. E isso acontece porque simplesmente não há o que dizer que fuja a estes dois substantivos. Desde os gregos. Ou melhor, antes mesmo deles, porque o que me parece certo é que estes homens que nos deixaram o alimento que hoje vomitamos também devem ter buscado seus mitos em outros mitos.
Está claro, então, que estou falando da esfera do humano. Do sujeito que se inscreve na ordem do efêmero. Estou falando do brotós grego. E, se é mortal, se passa, se vai ser interrompido, me parece também que ele não pode ser levado tão a sério.
Então, deixo o substantivo feminino (existência) e o masculino (amor) um pouco de lado, para falar brevemente de um adjetivo. E um adjetivo comum de dois gêneros: delirante. No tema desta mesa, o que me pareceu mais provocador foi esse adjetivo. È que sou capaz de pensar que a literatura não está de fato nem no amor, nem na existência, mas na forma como falamos deles. É nessa forma, que se insere na ordem do significante, que somos capaz de perceber o delírio literário. E é por causa dela que podemos dizer que tudo já foi dito e que, ao mesmo tempo, ainda falta muito a dizer.
O exemplo que me parece mais apropriado neste sentido vem de Borges. De Jorge Luis Borges e de seu “Pierre Menard, autor do Quixote”. Nesta narrativa, Borges conta como seu amigo Menard logrou executar a tarefa assombrosa de escrever, sendo um homem moderno, quase três capítulos exatos do Quixote. Menard, que descreve sua obra-prima a Borges em carta datada de 30 de setembro de 1934, não queria escrever outro Quixote. Ele queria escrever o Quixote. E seu êxito não vem do fato dele próprio se transformar em um Cervantes, mas de continuar a ser Pierre Menard. È por isso que Borges afirma que, se o texto de um e de outro são verbalmente idênticos, o de Menard é quase infinitamente mais rico.
É que a tarefa do francês é, para Borges, extremamente complexa e igualmente fútil. Para o argentino, “não há exercício intelectual que não seja finalmente inútil”. Trata-se, é o que então quero crer, de algo delirante, resultado de um trabalho tão efêmero quanto quem o produz. E esse trabalho, que é reproduzir literalmente aquilo que já foi escrito, só é possível ser realizado a partir do momento em que a forma, e não o conteúdo, é priorizado. Não é à toa que Menard descarta desde logo a possibilidade, para ele fácil, de se tornar um brotós do século 17. Ele quer ser um mortal do século 20 e, ainda assim, escrever o Quixote. Ou seja: Menard não busca o significado do que foi dito. Ele quer a coisa em si, optando pelo delirante.
E talvez seja esta opção pela priorização do significante, do simbólico, que faça com que determinadas narrativas delirem sobre temas tão importantes e tão inúteis como amor e existência. Na verdade, eu creio que tudo não passa mesmo de uma brincadeira. Uma brincadeira como a que vem num e-mail que um amigo meu que também escreve recebeu da sua namorada, que estava danada com o fato desse meu amigo, embora jovem e cheio de coisas mais importantes pra fazer, dedicar-se mais a seus textos do que a ela. Ele me mostrou o e-mail e me deixou lê-lo aqui. Ficou até alegre com isso. Achei engraçado porque vem bem de encontro àquilo que eu estava pensando e, portanto, o e-mail dela me ajudou a escrever esta minha intervenção. O e-mail é este:
Xuxu,
Esta noite fiquei pensando sobre essa coisa que o Edmundo vai falar. Narrativas delirantes de amor e existência, não é mesmo? Você e ele preocupados, Xuxu. Saindo atrás de citações importantes. Não falando com ninguém. Gastando seu rico dinheirinho com esses livros novos que eu não sei para o que servem. E você? Ai, que raiva. Jogando seu olhar pra algum lugar que eu até agora fico querendo encontrar e não posso. Fiquei com ciúmes, meu bem. Com ciúmes desses seus devaneios todos. Sei que você é muito certinho, centrado. Que esses delírios que eu reconheço em meu dia a dia, quando estou tomando um banho ou comendo uma empadinha na lanchonete aqui do lado, você só entende naquilo que faz com a virtude das suas páginas em branco. É. Porque pra você os delírios só parecem existir mesmo nas palavras, no que você faz com elas quando está sozinho e longe de mim. Nas suas narrativinhas. Mas, pra mim, não, Xuxu. Pra mim, todas as narrativas são de amor e existência. E seriam de quê, então? Pensa que não sei? Sei muito bem. Sei que, desde os gregos, e com certeza até antes deles, vocês só conseguem escrever sobre isso. E sabe por quê? Porque só existe isto de assunto pra vocês poderem escrever. Amor e existência. São todas a mesma história. Mas vocês querem fazer a coisa ficar diferente, parecer. Não é isso aquilo que vocês dizem? Aquela onda do significante? Não é esse o seu delírio predileto? Brincar com as palavras? Pois meu delírio predileto é existir perto de você, seu chato. Brincar com seu brinquedinho. Com esse significante que você tem no meio das pernas. Esse brinquedinho que é falo e que é fala. E que também é pedreira, instrumento, bengala, banana, jeba e coração. Sim, meu xuxu, falo por mim: o coração é uma jeba. Uma jeba enorme e maldita. Tá duro e, de repente, murchou. Uma coisa atroz. Uma empáfia, uma onda de mil precipícios. Me rasga toda, me dói, me rói, me atravessa, me alegra, me bota triste e troncha, zelosa, alucinada, passada, gelada, um inverno de batidas que entram pela medula e saem sangue através das manobras diastólicas das nossas cabeças, do meu útero. Uma mentira, meu amor. Uma mentira bruta que vocês lapidam pra que ela possa fingir que parece a verdade mais absoluta desse mundo. E, enquanto isso, nós continuamos sozinhos. Morando no mesmo apê, dormindo na mesma cama, mas a 20 mil quilômetros de distância um do outro. De manhã, você levanta e, mesmo eu estando a seu lado, prefere dar a volta ao mundo e só vir me encontrar à noite, depois de passar por Tóquios e Damascos. Aí, eu estou te esperando molhadinha e ensangüentada. Amando sem existir. Desesperada para ouvir seu falo falando alguma besteirinha de ocasião no meu ouvido.
Uma mentirinha qualquer, neste meu ouvidinho de pernas abertas, puro e incauto.
Fórum das Letras de Ouro Preto - 12 de novembro de 2005
Pois é isso: acredito que toda literatura narra, no gênero que lhe é inerente, temas ligados ao amor e à existência. Ou o Quixote, esta novela inaugural que agora está completando 400 anos, não seria um delírio completo sobre a existência? E, bem antes de Cervantes, o Édipo de Sófocles, que esvazia o mito para em seguida preenchê-lo novamente, não nos diz de como é trágico tentar fugir do destino para, em seguida, perceber que não há o que fazer?
E por aí seguem as narrativas: um jagunço que ama o outro, em Rosa; um homem que delira uma traição, em Machado; uma menina que deita com seu livro na rede e faz amor pela primeira vez com ele, como conta Clarice. Todas estas me parecem, por assim dizer, narrativas de amor e existência. E isso acontece porque simplesmente não há o que dizer que fuja a estes dois substantivos. Desde os gregos. Ou melhor, antes mesmo deles, porque o que me parece certo é que estes homens que nos deixaram o alimento que hoje vomitamos também devem ter buscado seus mitos em outros mitos.
Está claro, então, que estou falando da esfera do humano. Do sujeito que se inscreve na ordem do efêmero. Estou falando do brotós grego. E, se é mortal, se passa, se vai ser interrompido, me parece também que ele não pode ser levado tão a sério.
Então, deixo o substantivo feminino (existência) e o masculino (amor) um pouco de lado, para falar brevemente de um adjetivo. E um adjetivo comum de dois gêneros: delirante. No tema desta mesa, o que me pareceu mais provocador foi esse adjetivo. È que sou capaz de pensar que a literatura não está de fato nem no amor, nem na existência, mas na forma como falamos deles. É nessa forma, que se insere na ordem do significante, que somos capaz de perceber o delírio literário. E é por causa dela que podemos dizer que tudo já foi dito e que, ao mesmo tempo, ainda falta muito a dizer.
O exemplo que me parece mais apropriado neste sentido vem de Borges. De Jorge Luis Borges e de seu “Pierre Menard, autor do Quixote”. Nesta narrativa, Borges conta como seu amigo Menard logrou executar a tarefa assombrosa de escrever, sendo um homem moderno, quase três capítulos exatos do Quixote. Menard, que descreve sua obra-prima a Borges em carta datada de 30 de setembro de 1934, não queria escrever outro Quixote. Ele queria escrever o Quixote. E seu êxito não vem do fato dele próprio se transformar em um Cervantes, mas de continuar a ser Pierre Menard. È por isso que Borges afirma que, se o texto de um e de outro são verbalmente idênticos, o de Menard é quase infinitamente mais rico.
É que a tarefa do francês é, para Borges, extremamente complexa e igualmente fútil. Para o argentino, “não há exercício intelectual que não seja finalmente inútil”. Trata-se, é o que então quero crer, de algo delirante, resultado de um trabalho tão efêmero quanto quem o produz. E esse trabalho, que é reproduzir literalmente aquilo que já foi escrito, só é possível ser realizado a partir do momento em que a forma, e não o conteúdo, é priorizado. Não é à toa que Menard descarta desde logo a possibilidade, para ele fácil, de se tornar um brotós do século 17. Ele quer ser um mortal do século 20 e, ainda assim, escrever o Quixote. Ou seja: Menard não busca o significado do que foi dito. Ele quer a coisa em si, optando pelo delirante.
E talvez seja esta opção pela priorização do significante, do simbólico, que faça com que determinadas narrativas delirem sobre temas tão importantes e tão inúteis como amor e existência. Na verdade, eu creio que tudo não passa mesmo de uma brincadeira. Uma brincadeira como a que vem num e-mail que um amigo meu que também escreve recebeu da sua namorada, que estava danada com o fato desse meu amigo, embora jovem e cheio de coisas mais importantes pra fazer, dedicar-se mais a seus textos do que a ela. Ele me mostrou o e-mail e me deixou lê-lo aqui. Ficou até alegre com isso. Achei engraçado porque vem bem de encontro àquilo que eu estava pensando e, portanto, o e-mail dela me ajudou a escrever esta minha intervenção. O e-mail é este:
Xuxu,
Esta noite fiquei pensando sobre essa coisa que o Edmundo vai falar. Narrativas delirantes de amor e existência, não é mesmo? Você e ele preocupados, Xuxu. Saindo atrás de citações importantes. Não falando com ninguém. Gastando seu rico dinheirinho com esses livros novos que eu não sei para o que servem. E você? Ai, que raiva. Jogando seu olhar pra algum lugar que eu até agora fico querendo encontrar e não posso. Fiquei com ciúmes, meu bem. Com ciúmes desses seus devaneios todos. Sei que você é muito certinho, centrado. Que esses delírios que eu reconheço em meu dia a dia, quando estou tomando um banho ou comendo uma empadinha na lanchonete aqui do lado, você só entende naquilo que faz com a virtude das suas páginas em branco. É. Porque pra você os delírios só parecem existir mesmo nas palavras, no que você faz com elas quando está sozinho e longe de mim. Nas suas narrativinhas. Mas, pra mim, não, Xuxu. Pra mim, todas as narrativas são de amor e existência. E seriam de quê, então? Pensa que não sei? Sei muito bem. Sei que, desde os gregos, e com certeza até antes deles, vocês só conseguem escrever sobre isso. E sabe por quê? Porque só existe isto de assunto pra vocês poderem escrever. Amor e existência. São todas a mesma história. Mas vocês querem fazer a coisa ficar diferente, parecer. Não é isso aquilo que vocês dizem? Aquela onda do significante? Não é esse o seu delírio predileto? Brincar com as palavras? Pois meu delírio predileto é existir perto de você, seu chato. Brincar com seu brinquedinho. Com esse significante que você tem no meio das pernas. Esse brinquedinho que é falo e que é fala. E que também é pedreira, instrumento, bengala, banana, jeba e coração. Sim, meu xuxu, falo por mim: o coração é uma jeba. Uma jeba enorme e maldita. Tá duro e, de repente, murchou. Uma coisa atroz. Uma empáfia, uma onda de mil precipícios. Me rasga toda, me dói, me rói, me atravessa, me alegra, me bota triste e troncha, zelosa, alucinada, passada, gelada, um inverno de batidas que entram pela medula e saem sangue através das manobras diastólicas das nossas cabeças, do meu útero. Uma mentira, meu amor. Uma mentira bruta que vocês lapidam pra que ela possa fingir que parece a verdade mais absoluta desse mundo. E, enquanto isso, nós continuamos sozinhos. Morando no mesmo apê, dormindo na mesma cama, mas a 20 mil quilômetros de distância um do outro. De manhã, você levanta e, mesmo eu estando a seu lado, prefere dar a volta ao mundo e só vir me encontrar à noite, depois de passar por Tóquios e Damascos. Aí, eu estou te esperando molhadinha e ensangüentada. Amando sem existir. Desesperada para ouvir seu falo falando alguma besteirinha de ocasião no meu ouvido.
Uma mentirinha qualquer, neste meu ouvidinho de pernas abertas, puro e incauto.
Fórum das Letras de Ouro Preto - 12 de novembro de 2005