quinta-feira, agosto 16, 2007

A casa das baratas

Toda essa vida que a gente padece, toda essa loucura que a gente aquece, toda essa cachaça que a gente amanhece. Sabe com quem eu conversei outro dia? Isso. Isso mesmo, meu bem: com o Gurgel. Dessa vez ele estava acabrunhado. Não quis falar nada. Parecia que tinha tomado um porre daqueles. Perguntei O que, foi Gurgel? Tem alguma coisa te incomodando? Ele me olhou e seus olhos frios estavam mais frios ainda.

Não me disse nada, não me deu confiança. Ficou sentado aí, naquele banquinho ali, olhando para mim. Não quis incomodá-lo. Levantei, fui até à cozinha e tirei uma latinha da geladeira. Quando abri e me voltei, o Gurgel estava sentado naquela cadeira vermelha da mesa da cozinha. O que é que você quer, Gurgel? Aconteceu alguma coisa? Será que eu posso ajudar?

Mas o Gurgel não falava nada. Estava calado num banzo terrível. Parecia que tinha tomado oito lexotans três miligramas e ainda assim não conseguia dormir. Despejei a cerveja no copo, não gosto de tomar cerveja direto da latinha, e comecei a pensar. Sabe o que veio na minha cabeça, meu amor? A casa das baratas. Aquela vez em que nós descobrimos, no primeiro lugar em que moramos, a casa das baratas.

Você não se lembra? Eu lhe conto. A Alice estava nascida de pouco e já havia sido colocada no berço. Era de noite e fazia um pouquinho de frio. Você estava preparando uma sopinha e viu uma barata. Saiu correndo atrás dela e zapt, matou numa chinelada só. Foi aí que apareceu outra e mais outra e mais outra. Quatro baratas e você resolveu tirar aquilo a limpo e descobrir de onde vinham aqueles bichos. A sopinha foi esquecida e você partiu célere para descobrir onde viviam as baratas.


Depois de muito procurar, eu já incomodada com aquilo, nós encontramos a casa das baratas. Você lembra como era a casa? Uma casinha pequena, com poucos enfeites. Na parede da sala, um quadro de rosas amarelas; no centro, uma mesinha redonda com um aquariozinho de peixe no meio, dois sofazinhos vermelhos, uma estantezinha com alguns livros. Em um dos quartos, uma cama de casal, arranjada com uma colcha rosa e branca, os travesseiros por cima com fronhas a combinar. O armário branco tinha uma porta aberta, de onde se podia enxergar alguns vestidinhos e xales da dona Barata. Na frente da cama do casal, sobre uma mesinha, uma TV pequena ainda ligada, esquecida. Havia mais um quarto, um banheiro e uma cozinha. Tudo muito pequenininho. No quartinho, um bercinho branco de varetas finas e brancas onde dormia uma baratinha toda enrrugadinha. Ela tossia um pouco. Na cozinha, a dona Barata cozinhava alguma coisa tipo comida chinesa, com repolhos, pimentões, cebolas, couve-flor e pedacinhos de peito de frango. O seu Barato lia seu jornal e tomava um vinhozinho. As baratas que você matou deviam ter sido alguns vizinhos que vieram por causa do cheiro bom da comida da dona Barata e do viinho demi-sec do seu Barato. Deviam estar saindo tranqüilos depois de usufruírem da generosidade do dono da casa e você os matou. Matou do jeito que matou a Dona Barata, o seu Barato e a baratinha enrrugadinha do berço. Implacável com suas sandálias havaianas, revirando cama e berço, destruindo sofás, armário, estante, fogão e geladeira, derramando a comida pelo chão que antes estava limpinho, destroçando o quadro de flores e espatifando o aquário. Nem o único peixe vermelhinho você poupou. Eu fiquei um pouco triste porque, agora eu posso lhe contar, me deu uma vontade enorme de provar da comidinha daquele lar.

Depois, nada: lavamos as mãos e tomamos nossa sopinha.