segunda-feira, outubro 31, 2005

Imperdível

Entre 10 e 15 de novembro, acontece o 1° Fórum das Letras de Ouro Preto, sob o sol da Ufop e da Editora Record. Nele, estarão autores como Carl Honoré, Francisco José Viegas, Affonso Romano de Santa’Anna, Jean Paul Delfino, Luiz Ruffato, Lygia Fagundes Telles e Mario Sabino.

No dia 12, sábado, às 10h30, no Teatro Ouro Preto, eu, Edmundo de Novaes Gomes, Márcia Tiburi e Nelson de Oliveira formaremos a mesa “Narrativas delirantes sobre amor e existência”. Antes, às 9h00, no mesmo local, há outra mesa imperdível, sobretudo para aqueles que se interessam por jornalismo: Arnaldo Saraiva, Carlos Fino, Zuenir Ventura e Humberto Werneck falam sobre “Caminhos e limites do jornalismo literário”.

Na frente desse agito todo está a trepidante Guiomar de Grammont.

domingo, outubro 16, 2005

Sim

O que parece é que estou preparado para dizer Sim.

Sim para sair de mãos dadas pelos caminhos, mesmo sem saber ao certo onde eles vão dar. Sim para encarar a madrugada e ver o dia amanhecer, sem que o cansaço tome conta do meu corpo. Sim para repensar o passado, descobrindo suas marcas nas areias de mim. Sim para escrever um texto feliz, desleixado e torto, bobinho e afirmativo. Sim para morder a outra metade da laranja, deixando que o caldo me lambuze o resto. Sim para encarar meus medos. Sim para lidar com as angústias. Sim para deixar angústias e medos para trás. Sim para viver um dia de cada vez, fazendo do presente meu futuro. Sim para rir de uma piada nova. Sim para rir de uma piada velha. Sim para rir pela décima vez de uma piada velha como se ela fosse uma piada novíssima. Sim também para não rir quando a piada não tem graça. Sim para deixar a vida tomar conta de mim, mesmo sabendo que a morte pode estar perto. Sim para “a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar”. Sim para meus filhos, que são minha morada mais definitiva. Da mesma maneira, sim para meu texto. Sim para a moça que tira montanhas brancas das minhas costas. Sim para meu gozo alucinado e perdido, seja ele fácil ou difícil. Sim para as lagartixas na parede, os carrapatos debaixo do braço, os cachorrinhos que se lambem. Sim para o dia em que a vida soprou tão forte que até a pedra se moveu. Sim para o dia em a que pedra vai soprar o vento. Sim para minhas asas voando pelo azul. Um sim vermelho de paixão e verde de esperança. Sim de novo para os sorvetes, mesmo que eles tenham quer diets. Sim para os pés sujos de terra. Sim para os grilos e sapos que não me deixam dormir. Sim para o corpo lúcido que está a meu lado e também não me deixa dormir. Sim para as histórias que meu pai contava. Sim para as lágrimas que já chorei. Sim para as gargalhadas que ainda vou dar. Sim para tudo o que enternece e comove e faz rir ou chorar. Sim para o menino que tenho em mim. Sim para o homem que tem aquele menino. Sim pras esposas e pras putas, pros grosseiros e pros delicados, pras pretas e pras brancas, verdes e azuis, pros santos e pecadores. Sim para Joões, Marias, Antonios, Manuéis, Dulces, Carlos, Domingos, Vinícius, Ruths, Coelis, Isabéis, Denises, Marianas, Carolinas, Déboras, Silvias, Lucianas, Pedros, Rafaéis, Fernandos, Yaras, Carmens, Eugênios, Alices, Anas. Sim para os fantasmas que rondam minha cabeceira. Sim para a mulher que dorme e goza comigo. Sim para as alianças. Sim para a tolerância. Sim, oui, sí, yes, ja, evet, da, bai. Sim em todos os idiomas. Sim para o amor. Um sim definitivo para o amor.


E Sim, sobretudo, para a minha vontade de dizer Sim.

domingo, outubro 09, 2005

A sorte de Ulisses

Repleto de sensações. Talvez tenha sido essa a impressão que Ulisses experimentou ao encontrar homem a criancinha que deixou ao partir para Tróia. Sensações de absolutamente tudo, talvez: desamparo, poder, alegria, embriaguez. Sensações tão decisivas que seriam capazes de mergulhar em turbilhões a vida de qualquer homem, mesmo sendo esse homem um anĕr.

Assim, a simples vista de Telêmaco deve ter sido suficiente para gerar impressões tremendas. Poder, ao ver que o menino que deixara era já um homem feito, formado para dar ao pai a imortalidade invejada dos deuses. Alegria, no sorriso do filho perfeito e pronto para, ao lado de seu autor efêmero, enfrentar outras muitas guerras. Embriaguez, com os lábios do pai que pousam na testa do filho e sorvem a bebida do amor puro e sem justificativas. Desamparo, ao perceber que ele, Ulisses, ao deixar o filho criança e encontrá-lo já homem, perdera todo esse crescimento, envolvido em guerras terríveis.

Mas Ulisses, nessa mistura de sentimentos, não está sozinho. Suas sensações, é o que parece, são as mesmas que os pais experimentamos ao surpreender, crescido, o sujeito que já foi menino. Também conhecemos a alegria e o poder de sentirmo-nos eternos e acompanhados. A embriaguez de abraçá-lo, de beijá-lo. E o desamparo de nos darmos conta de que perdemos, como quem perde a maior parte da água que se tenta levar à boca com as mãos para saciar uma sede, cada uma das transformações que aconteceram dentro e fora de nossos Telêmacos.

Estive, assim, repleto de sensações, na noite passada. Éramos dois os casais: eu, minha Penélope; meu filho e sua namorada. Ao olhar para a cena que se delineava, o único que consegui perceber naquela mesa de restaurante em que jantávamos os quatro é que as águas são para seguir seu próprio curso. Elas não se deixam segurar mais do que uns poucos instantes pelas mãos que dela querem se apoderar.

Sim, meu Telêmaco estava lá, beijando com um carinho imenso a moça que ia a seu lado. E eu, como Ulisses, dei-me conta de que, embora não fossem Tróias, as guerras que vivi serviram também para me fazer perder a transformação daquele que conheci menino em sujeito de uma história que só podia mesmo ser sua.

É que não adianta estarmos, pais, sempre ao lado de seus filhos, na esperança de que eles sejam nossos. Da mesma maneira que Ulisses, mesmo que tenhamos sido sempre presentes, iremos inexoravelmente perder suas transformações mais íntimas e nos assustar quando Telêmaco se nos deparar homem. Ainda que as guerras sejam leves, os Ulisses teremos deixado escapar por entre os dedos os momentos revolucionários da mudança interior.

Isso porque tais momentos são próprios, de cada um. Não podem pertencer a ninguém senão aos que se transformam, que deixam de ser meninos para se tornar homens. Trata-se de uma vivência pessoal e os que estão de fora, ao tentarem possuí-la com as mãos para matar sua sede, correrão o risco de não se saciar jamais. O máximo que é possível conseguir são algumas gotinhas, suficientes apenas para refrescar os lábios.

E é por isso que meu filho, depois do jantar, segurou a mão de sua namorada e se pôs a caminhar à minha frente. Atrás, eu e minha Penélope íamos também sonhando outras sensações, outros sabores, novas experiências. É só o que eu poderia fazer, uma vez que a criança que me dera seu primeiro choro seguia à minha frente, decidida e por seus próprios pés e vontades. Eu não podia fazer nada, a não ser sonhar.

Sonhar, talvez, outros Telêmacos, sorte de todo Ulisses.

Com a graça de Deus

Tem gente que tem muitos problemas. Eu sei. Sei mesmo muito bem disso. Mas eu só tenho um. Um probleminha só. Eu não tenho problemas de moradia, não tenho problemas com emprego, com vícios, não tenho problemas políticos, filosóficos, existenciais. Não me interessa mais saber de onde vim nem para onde vou. Não tenho problemas com a justiça, com religião ou com a polícia. Nem com doença eu não tenho problema. Muita gente devia de ter inveja de mim. Porque hoje eu só tenho mesmo é um problema só. Unzinho. Um probleminha só. Ele aparece, o tal problema, todos os dias. E, aí, sabe o que é que eu faço? Eu resolvo meu problema e espero ele vir de novo, só pra eu tornar a resolver. Eu só tenho um problema na minha vida. E, cada vez que ele aparece, eu resolvo este meu problema de um jeito muito simples.

Revirando qualquer lata de lixo que é a graça de Deus mesmo que coloca na minha frente.

domingo, outubro 02, 2005

O único defeito

Vim olhando a chuva fininha que molhava a vidraça do ônibus. A paisagem lá fora começava a escurecer. Sozinho, alheado, é o que poderiam dizer de mim. Nem mesmo o Psiu! do trocador conseguiu chamar minha atenção. Foi preciso que a garota a meu lado me cutucasse o ombro para que eu pudesse me lembrar que deveria me levantar e pegar o troco que o sujeito não me entregara quando passei pela roleta.

Alheado, sim. Só, não. Enquanto vinha com a vista pousada no movimento da cidade que desfilava para mim, estava também sonhando, distraído de tudo que acontecia ao redor. E é porque vinha aéreo que não estava abandonado. Sonhos são conjuntos de idéias itinerantes cuja maior propriedade é mesmo não nos deixar sozinhos. Sonhamos porque não suportamos a coisa da solidão.

Talvez seja por isso que, no Egito antigo, a mitologia rezava que os deuses haviam criado o sonho para apontar o caminho ao homem, uma vez que ele não podia prever o futuro. É esse, então, o motivo de sonharmos: adivinhar o que virá. E, assim, sonhamos de todas as maneiras e com tudo. Acordados e dormidos. Com riquezas e misérias. Coisas boas e ruins.

Eu, naquele momento em que olhava a vidraça de gotinhas e a moça bateu em meu ombro, encontrava-me em transe total com um certo devaneio. Sonhava que havia sonhado que podia ser feliz. Era isto mesmo. Na verdade, eu não delirava. Apenas me lembrava de um sonho que havia tido com tal intensidade que não houve remédio para ele, para tal quimera, a não ser tornar-se realidade.

Sim. Há sonhos que são definidos com tamanha energia que não conseguem escapar à possibilidade de desandarem reais. E só os deuses sabem o quanto havia rogado para que a felicidade me alcançasse e eu, numa tarde de primavera em que a chuvinha desse fina na vidraça de um ônibus, alcançasse enxergá-la de maneira trepidante.

No exato momento em que a menina tocou meu ombro, eu pensava que era feliz. Mas pensava também que o único defeito de tudo o que eu estava vivendo era não haver defeito algum. Foi então que este pensamento fez com que meu barco, que apenas há instantes havia zarpado para Ítaca, adernasse momentaneamente e eu passasse a temer o pior.

No entanto, depois que me levantei, peguei as moedinhas do troco e, quase numa prece, sentei-me de novo, percebi, aliviado, que o barco continuava na mesma direção, a toda vela. O que havia acontecido era o que sói ocorrer aos humanos que somos surpreendidos por alegria e fortuna intensas. Queremos acordar do sonho e dizer que tudo aquilo não pode ser possível.

No meu caso, contudo, a alegria era real. Absolutamente tangível. Tal felicidade, nos últimos tempos, passava as noites comigo. Acordávamos e, juntos, arrumávamos os lençóis da cama e fazíamos o desjejum sorrindo um para o outro. Depois, saíamos de mãos dadas pela cidade. Entre uma e outra coisa, colávamos nossas bocas apaixonadamente, inventando beijos que só existem mesmo nos sonhos. Meu mito havia se realizado, o barco zarpava decidido e reto, a chuvinha fina continuava a desenhar a vidraça do ônibus.

E o único defeito que eu podia vislumbrar era mesmo o fato de não haver defeito algum em tudo aquilo.