quinta-feira, dezembro 22, 2005

Falando

Mais sobre o Falar. Desta vez, duas resenhas críticas feitas por estudantes de jornalismo do Centro Universitário de Belo Horizonte, em novembro de 2005.

Falar Maldito
Falar, todos falam. Falam dos outros, falam de si. Falam disso, falam daquilo. Ouvir, poucos ouvem. Ouvir dói. Ouvir choca. Por isso, “Falar”, primeiro romance de Edmundo de Novaes Gomes, causa estranhamento. Mexe nas entranhas.
Antes de tudo, o livro, Prêmio Casa de Cultura Mário Quintana 2003, é uma colagem. A personagem central, Ana, não é um retrato, mas uma montagem de vários retratos. Não é um rosto, mas restos de vários rostos. Assim, não é possível manter-se distante da narrativa, porque, num determinado momento, um pedaço seu compõe essa colagem.
O enredo do livro conduz a reações inesperadamente esperadas. É como se o autor desse as mãos para o leitor e o conduzisse durante a trajetória do “Falar”. Edmundo sabe onde e como tocar o leitor. Constrói personagens para você amá-los e odiá-los. O tempo todo, Novaes bate e sopra. Palavras no diminutivo para situações pesadas, como o estupro de Neguinha, uma criança com 6 ou 7 anos. Um estupro feito pelo próprio pai da menina, um homem de características apaixonantes e gestos reprováveis.
Assim, o autor grita absurdos e sussurra palavras de amor. E, quando você deseja soltar as mãos e correr dali, o autor a segura ainda mais forte. É impossível se desvencilhar. Tapar os ouvidos. É impossível não querer falar. Daí vem o mal estar: você está fadado a ouvir.
O assunto é o mesmo. Amor e ódio. A linha tênue que os separa. E, nesse ponto, o autor é peculiar. Ousa ir além. Transpõe a linha. Discute convenções, velhos hábitos, fala de tabus. Duvida de Deus (aqui, talvez fosse cabível dizer deus, assim, minúsculo). E o que choca não é o estupro. Não é a putaria. Não é o incesto. Não é a bebida. Não é o suicídio. Tampouco o dialogo surreal entre o suicida e a protagonista Ana. O que choca é a linguagem: nua e crua. A linguagem que corta, que esmiúça, que, nas palavras de Ana, “te fode no útero”.
A linguagem é ritmada. Tem vida própria, é personagem da trama. São frases curtas. Diálogos em textos corridos. Nada de parágrafo e travessão. Um vômito frenético e desesperado que não comporta regras da língua portuguesa. “Falar” assume uma língua própria. A língua do íntimo, do pessoal. A língua ainda não falada e sempre subentendida. Há grandes sacadas em pequenas palavras que só olhos atentos percebem. Daí a possibilidade de várias leituras para “Falar”. Pode ser um livro de auto-ajuda, um livro de ficção, um livro de romance, um livro de loucura. Mas sempre um livro de linguagem. Tudo está solto e preso na identificação do leitor com Ana.
Nessa história, os diabos são anjos. Os demônios habitam o céu num dia em que Deus não está lá. O caos põe ordem. Porque é preciso matar. Ana, ao falar, justifica a morte, pede licença para fazê-lo. Mas falha. Porque, para matar, é preciso morrer. O amor pode ser um sentimento solitário que, na falta do outro, se preenche de lembranças. E a morte, talvez, mas só talvez, seja a chave para sair do mundo de “Falar”.
-Thaís Palhares

Um novo modo de falar
Quem está acostumado com livros tradicionais, que obedecem a uma seqüência linear de fatos, que mantêm uma postura formal na linguagem, aperte os cintos antes de começar a ler Falar. Vencedor do Prêmio Casa de Cultura Mário Quintana 2003, o livro de Edmundo de Novaes Gomes é uma narrativa ensandecida, delirante e capaz de deixar os vovôs do século passado de queixo caído. O autor não mede palavras ao tratar de questões como incesto e é frio ao relatar detalhes. “Depois, o Noca tirou o pau do pai da menina pra fora e foi ajeitando, a menina mexendo, o pinto entrando. O pinto do Noca entrando na bundinha da filhinha dele e a gente não podendo ver mais nada...”.
Há muito tempo, o ser humano busca entender seu comportamento frente a outras pessoas. Ana, a protagonista e narradora da história, é o som e a fala das muitas vozes que ecoam a cada página. Como no mito de Eco, uma linda ninfa, amante dos bosques e das montanhas, mas que, no entanto, tinha um grande defeito: falava demais e costumava sempre dar a última palavra em qualquer conversa da qual participava. Na narrativa, Ana também dá a ultima palavra ao vomitar tudo o que lhe amargura a alma. No mito, Eco passou a viver nas cavernas e montanhas, sem se alimentar nem ter qualquer tipo de contato com outros seres e seu corpo foi se definhando até desaparecer completamente, restando-lhe apenas o eco de sua voz, que continuava a responder a todos que a chamavam, conservando o costume de dizer sempre a última palavra. Na trama, a Ana tenta matar o amor, mas definha ao perceber que ele continua vivo.
Falar é um romance de amor e ódio em que o narrador fala, fala, fala e fala. E o que é o ódio senão o amor que adoeceu? Nas entrelinhas, o recado que se percebe é que o livro nada mais é que uma metáfora. Uma metáfora sobre o amor. Um amor doentio, imortal, louco. Um amor que, para acabar, precisa morrer. Porque, ainda que se mate o ser amado, o amor continuará existindo. Para que um amor morra de verdade, é preciso morrer com ele.
Em algum momento, você se identifica com a história. Não há como fugir disso porque, ainda que seja muito louca, a narrativa mexe com nossas entranhas, mexe com naquelas “coisas” que um dia pensamos, mas não tivemos coragem de falar.
Falar, uma viagem e tanto para muitos, uma verdade para outros. Não há como enquadrá-lo numa categoria. É difícil não se assustar, não se chocar com os tabus sendo ditos ali de uma maneira tão simples, normal, como se fizessem parte da vida. E fazem. E talvez aí esteja o barato de tudo. Uma mistura de palavrões, orgias, putarias, diálogos com um deus falido e um suicida. Um elo entre comportamentos e amores. Um livro complexo, único.
-Patrícia Coelho Caldas

domingo, dezembro 11, 2005

Atrás dos olhos das meninas sérias

Este é o nome da adaptação que Juarez Dias, Léo Quintão e Neise Neves farão do meu primeiro romance, Falar. Trata-se de pessoas de grande talento. O Juarez eu já conhecia, foi meu aluno, pode? Risos. Ao Léo e à Neise, um casal sensacional, fui apresentado recentemente. Fico, então, por aqui, acompanhando a montagem através do link que Juarez criou (ver ao lado) e torcendo muito para que tudo dê certo.

domingo, novembro 13, 2005

Narrativas delirantes de amor e existência

Me parece que, para dizer de narrativas delirantes sobre amor e existência, teríamos que falar de toda a literatura. Ou melhor, de toda criação literária. E aqui estamos enxergando a literatura como expressão daquilo que levamos dentro de nós e que somos capazes de revelar, em forma de arte, a partir de uma construção cerebral.

Pois é isso: acredito que toda literatura narra, no gênero que lhe é inerente, temas ligados ao amor e à existência. Ou o Quixote, esta novela inaugural que agora está completando 400 anos, não seria um delírio completo sobre a existência? E, bem antes de Cervantes, o Édipo de Sófocles, que esvazia o mito para em seguida preenchê-lo novamente, não nos diz de como é trágico tentar fugir do destino para, em seguida, perceber que não há o que fazer?

E por aí seguem as narrativas: um jagunço que ama o outro, em Rosa; um homem que delira uma traição, em Machado; uma menina que deita com seu livro na rede e faz amor pela primeira vez com ele, como conta Clarice. Todas estas me parecem, por assim dizer, narrativas de amor e existência. E isso acontece porque simplesmente não há o que dizer que fuja a estes dois substantivos. Desde os gregos. Ou melhor, antes mesmo deles, porque o que me parece certo é que estes homens que nos deixaram o alimento que hoje vomitamos também devem ter buscado seus mitos em outros mitos.

Está claro, então, que estou falando da esfera do humano. Do sujeito que se inscreve na ordem do efêmero. Estou falando do brotós grego. E, se é mortal, se passa, se vai ser interrompido, me parece também que ele não pode ser levado tão a sério.

Então, deixo o substantivo feminino (existência) e o masculino (amor) um pouco de lado, para falar brevemente de um adjetivo. E um adjetivo comum de dois gêneros: delirante. No tema desta mesa, o que me pareceu mais provocador foi esse adjetivo. È que sou capaz de pensar que a literatura não está de fato nem no amor, nem na existência, mas na forma como falamos deles. É nessa forma, que se insere na ordem do significante, que somos capaz de perceber o delírio literário. E é por causa dela que podemos dizer que tudo já foi dito e que, ao mesmo tempo, ainda falta muito a dizer.

O exemplo que me parece mais apropriado neste sentido vem de Borges. De Jorge Luis Borges e de seu “Pierre Menard, autor do Quixote”. Nesta narrativa, Borges conta como seu amigo Menard logrou executar a tarefa assombrosa de escrever, sendo um homem moderno, quase três capítulos exatos do Quixote. Menard, que descreve sua obra-prima a Borges em carta datada de 30 de setembro de 1934, não queria escrever outro Quixote. Ele queria escrever o Quixote. E seu êxito não vem do fato dele próprio se transformar em um Cervantes, mas de continuar a ser Pierre Menard. È por isso que Borges afirma que, se o texto de um e de outro são verbalmente idênticos, o de Menard é quase infinitamente mais rico.

É que a tarefa do francês é, para Borges, extremamente complexa e igualmente fútil. Para o argentino, “não há exercício intelectual que não seja finalmente inútil”. Trata-se, é o que então quero crer, de algo delirante, resultado de um trabalho tão efêmero quanto quem o produz. E esse trabalho, que é reproduzir literalmente aquilo que já foi escrito, só é possível ser realizado a partir do momento em que a forma, e não o conteúdo, é priorizado. Não é à toa que Menard descarta desde logo a possibilidade, para ele fácil, de se tornar um brotós do século 17. Ele quer ser um mortal do século 20 e, ainda assim, escrever o Quixote. Ou seja: Menard não busca o significado do que foi dito. Ele quer a coisa em si, optando pelo delirante.

E talvez seja esta opção pela priorização do significante, do simbólico, que faça com que determinadas narrativas delirem sobre temas tão importantes e tão inúteis como amor e existência. Na verdade, eu creio que tudo não passa mesmo de uma brincadeira. Uma brincadeira como a que vem num e-mail que um amigo meu que também escreve recebeu da sua namorada, que estava danada com o fato desse meu amigo, embora jovem e cheio de coisas mais importantes pra fazer, dedicar-se mais a seus textos do que a ela. Ele me mostrou o e-mail e me deixou lê-lo aqui. Ficou até alegre com isso. Achei engraçado porque vem bem de encontro àquilo que eu estava pensando e, portanto, o e-mail dela me ajudou a escrever esta minha intervenção. O e-mail é este:

Xuxu,

Esta noite fiquei pensando sobre essa coisa que o Edmundo vai falar. Narrativas delirantes de amor e existência, não é mesmo? Você e ele preocupados, Xuxu. Saindo atrás de citações importantes. Não falando com ninguém. Gastando seu rico dinheirinho com esses livros novos que eu não sei para o que servem. E você? Ai, que raiva. Jogando seu olhar pra algum lugar que eu até agora fico querendo encontrar e não posso. Fiquei com ciúmes, meu bem. Com ciúmes desses seus devaneios todos. Sei que você é muito certinho, centrado. Que esses delírios que eu reconheço em meu dia a dia, quando estou tomando um banho ou comendo uma empadinha na lanchonete aqui do lado, você só entende naquilo que faz com a virtude das suas páginas em branco. É. Porque pra você os delírios só parecem existir mesmo nas palavras, no que você faz com elas quando está sozinho e longe de mim. Nas suas narrativinhas. Mas, pra mim, não, Xuxu. Pra mim, todas as narrativas são de amor e existência. E seriam de quê, então? Pensa que não sei? Sei muito bem. Sei que, desde os gregos, e com certeza até antes deles, vocês só conseguem escrever sobre isso. E sabe por quê? Porque só existe isto de assunto pra vocês poderem escrever. Amor e existência. São todas a mesma história. Mas vocês querem fazer a coisa ficar diferente, parecer. Não é isso aquilo que vocês dizem? Aquela onda do significante? Não é esse o seu delírio predileto? Brincar com as palavras? Pois meu delírio predileto é existir perto de você, seu chato. Brincar com seu brinquedinho. Com esse significante que você tem no meio das pernas. Esse brinquedinho que é falo e que é fala. E que também é pedreira, instrumento, bengala, banana, jeba e coração. Sim, meu xuxu, falo por mim: o coração é uma jeba. Uma jeba enorme e maldita. Tá duro e, de repente, murchou. Uma coisa atroz. Uma empáfia, uma onda de mil precipícios. Me rasga toda, me dói, me rói, me atravessa, me alegra, me bota triste e troncha, zelosa, alucinada, passada, gelada, um inverno de batidas que entram pela medula e saem sangue através das manobras diastólicas das nossas cabeças, do meu útero. Uma mentira, meu amor. Uma mentira bruta que vocês lapidam pra que ela possa fingir que parece a verdade mais absoluta desse mundo. E, enquanto isso, nós continuamos sozinhos. Morando no mesmo apê, dormindo na mesma cama, mas a 20 mil quilômetros de distância um do outro. De manhã, você levanta e, mesmo eu estando a seu lado, prefere dar a volta ao mundo e só vir me encontrar à noite, depois de passar por Tóquios e Damascos. Aí, eu estou te esperando molhadinha e ensangüentada. Amando sem existir. Desesperada para ouvir seu falo falando alguma besteirinha de ocasião no meu ouvido.

Uma mentirinha qualquer, neste meu ouvidinho de pernas abertas, puro e incauto.

Fórum das Letras de Ouro Preto - 12 de novembro de 2005

segunda-feira, outubro 31, 2005

Imperdível

Entre 10 e 15 de novembro, acontece o 1° Fórum das Letras de Ouro Preto, sob o sol da Ufop e da Editora Record. Nele, estarão autores como Carl Honoré, Francisco José Viegas, Affonso Romano de Santa’Anna, Jean Paul Delfino, Luiz Ruffato, Lygia Fagundes Telles e Mario Sabino.

No dia 12, sábado, às 10h30, no Teatro Ouro Preto, eu, Edmundo de Novaes Gomes, Márcia Tiburi e Nelson de Oliveira formaremos a mesa “Narrativas delirantes sobre amor e existência”. Antes, às 9h00, no mesmo local, há outra mesa imperdível, sobretudo para aqueles que se interessam por jornalismo: Arnaldo Saraiva, Carlos Fino, Zuenir Ventura e Humberto Werneck falam sobre “Caminhos e limites do jornalismo literário”.

Na frente desse agito todo está a trepidante Guiomar de Grammont.

domingo, outubro 16, 2005

Sim

O que parece é que estou preparado para dizer Sim.

Sim para sair de mãos dadas pelos caminhos, mesmo sem saber ao certo onde eles vão dar. Sim para encarar a madrugada e ver o dia amanhecer, sem que o cansaço tome conta do meu corpo. Sim para repensar o passado, descobrindo suas marcas nas areias de mim. Sim para escrever um texto feliz, desleixado e torto, bobinho e afirmativo. Sim para morder a outra metade da laranja, deixando que o caldo me lambuze o resto. Sim para encarar meus medos. Sim para lidar com as angústias. Sim para deixar angústias e medos para trás. Sim para viver um dia de cada vez, fazendo do presente meu futuro. Sim para rir de uma piada nova. Sim para rir de uma piada velha. Sim para rir pela décima vez de uma piada velha como se ela fosse uma piada novíssima. Sim também para não rir quando a piada não tem graça. Sim para deixar a vida tomar conta de mim, mesmo sabendo que a morte pode estar perto. Sim para “a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar”. Sim para meus filhos, que são minha morada mais definitiva. Da mesma maneira, sim para meu texto. Sim para a moça que tira montanhas brancas das minhas costas. Sim para meu gozo alucinado e perdido, seja ele fácil ou difícil. Sim para as lagartixas na parede, os carrapatos debaixo do braço, os cachorrinhos que se lambem. Sim para o dia em que a vida soprou tão forte que até a pedra se moveu. Sim para o dia em a que pedra vai soprar o vento. Sim para minhas asas voando pelo azul. Um sim vermelho de paixão e verde de esperança. Sim de novo para os sorvetes, mesmo que eles tenham quer diets. Sim para os pés sujos de terra. Sim para os grilos e sapos que não me deixam dormir. Sim para o corpo lúcido que está a meu lado e também não me deixa dormir. Sim para as histórias que meu pai contava. Sim para as lágrimas que já chorei. Sim para as gargalhadas que ainda vou dar. Sim para tudo o que enternece e comove e faz rir ou chorar. Sim para o menino que tenho em mim. Sim para o homem que tem aquele menino. Sim pras esposas e pras putas, pros grosseiros e pros delicados, pras pretas e pras brancas, verdes e azuis, pros santos e pecadores. Sim para Joões, Marias, Antonios, Manuéis, Dulces, Carlos, Domingos, Vinícius, Ruths, Coelis, Isabéis, Denises, Marianas, Carolinas, Déboras, Silvias, Lucianas, Pedros, Rafaéis, Fernandos, Yaras, Carmens, Eugênios, Alices, Anas. Sim para os fantasmas que rondam minha cabeceira. Sim para a mulher que dorme e goza comigo. Sim para as alianças. Sim para a tolerância. Sim, oui, sí, yes, ja, evet, da, bai. Sim em todos os idiomas. Sim para o amor. Um sim definitivo para o amor.


E Sim, sobretudo, para a minha vontade de dizer Sim.

domingo, outubro 09, 2005

A sorte de Ulisses

Repleto de sensações. Talvez tenha sido essa a impressão que Ulisses experimentou ao encontrar homem a criancinha que deixou ao partir para Tróia. Sensações de absolutamente tudo, talvez: desamparo, poder, alegria, embriaguez. Sensações tão decisivas que seriam capazes de mergulhar em turbilhões a vida de qualquer homem, mesmo sendo esse homem um anĕr.

Assim, a simples vista de Telêmaco deve ter sido suficiente para gerar impressões tremendas. Poder, ao ver que o menino que deixara era já um homem feito, formado para dar ao pai a imortalidade invejada dos deuses. Alegria, no sorriso do filho perfeito e pronto para, ao lado de seu autor efêmero, enfrentar outras muitas guerras. Embriaguez, com os lábios do pai que pousam na testa do filho e sorvem a bebida do amor puro e sem justificativas. Desamparo, ao perceber que ele, Ulisses, ao deixar o filho criança e encontrá-lo já homem, perdera todo esse crescimento, envolvido em guerras terríveis.

Mas Ulisses, nessa mistura de sentimentos, não está sozinho. Suas sensações, é o que parece, são as mesmas que os pais experimentamos ao surpreender, crescido, o sujeito que já foi menino. Também conhecemos a alegria e o poder de sentirmo-nos eternos e acompanhados. A embriaguez de abraçá-lo, de beijá-lo. E o desamparo de nos darmos conta de que perdemos, como quem perde a maior parte da água que se tenta levar à boca com as mãos para saciar uma sede, cada uma das transformações que aconteceram dentro e fora de nossos Telêmacos.

Estive, assim, repleto de sensações, na noite passada. Éramos dois os casais: eu, minha Penélope; meu filho e sua namorada. Ao olhar para a cena que se delineava, o único que consegui perceber naquela mesa de restaurante em que jantávamos os quatro é que as águas são para seguir seu próprio curso. Elas não se deixam segurar mais do que uns poucos instantes pelas mãos que dela querem se apoderar.

Sim, meu Telêmaco estava lá, beijando com um carinho imenso a moça que ia a seu lado. E eu, como Ulisses, dei-me conta de que, embora não fossem Tróias, as guerras que vivi serviram também para me fazer perder a transformação daquele que conheci menino em sujeito de uma história que só podia mesmo ser sua.

É que não adianta estarmos, pais, sempre ao lado de seus filhos, na esperança de que eles sejam nossos. Da mesma maneira que Ulisses, mesmo que tenhamos sido sempre presentes, iremos inexoravelmente perder suas transformações mais íntimas e nos assustar quando Telêmaco se nos deparar homem. Ainda que as guerras sejam leves, os Ulisses teremos deixado escapar por entre os dedos os momentos revolucionários da mudança interior.

Isso porque tais momentos são próprios, de cada um. Não podem pertencer a ninguém senão aos que se transformam, que deixam de ser meninos para se tornar homens. Trata-se de uma vivência pessoal e os que estão de fora, ao tentarem possuí-la com as mãos para matar sua sede, correrão o risco de não se saciar jamais. O máximo que é possível conseguir são algumas gotinhas, suficientes apenas para refrescar os lábios.

E é por isso que meu filho, depois do jantar, segurou a mão de sua namorada e se pôs a caminhar à minha frente. Atrás, eu e minha Penélope íamos também sonhando outras sensações, outros sabores, novas experiências. É só o que eu poderia fazer, uma vez que a criança que me dera seu primeiro choro seguia à minha frente, decidida e por seus próprios pés e vontades. Eu não podia fazer nada, a não ser sonhar.

Sonhar, talvez, outros Telêmacos, sorte de todo Ulisses.

Com a graça de Deus

Tem gente que tem muitos problemas. Eu sei. Sei mesmo muito bem disso. Mas eu só tenho um. Um probleminha só. Eu não tenho problemas de moradia, não tenho problemas com emprego, com vícios, não tenho problemas políticos, filosóficos, existenciais. Não me interessa mais saber de onde vim nem para onde vou. Não tenho problemas com a justiça, com religião ou com a polícia. Nem com doença eu não tenho problema. Muita gente devia de ter inveja de mim. Porque hoje eu só tenho mesmo é um problema só. Unzinho. Um probleminha só. Ele aparece, o tal problema, todos os dias. E, aí, sabe o que é que eu faço? Eu resolvo meu problema e espero ele vir de novo, só pra eu tornar a resolver. Eu só tenho um problema na minha vida. E, cada vez que ele aparece, eu resolvo este meu problema de um jeito muito simples.

Revirando qualquer lata de lixo que é a graça de Deus mesmo que coloca na minha frente.

domingo, outubro 02, 2005

O único defeito

Vim olhando a chuva fininha que molhava a vidraça do ônibus. A paisagem lá fora começava a escurecer. Sozinho, alheado, é o que poderiam dizer de mim. Nem mesmo o Psiu! do trocador conseguiu chamar minha atenção. Foi preciso que a garota a meu lado me cutucasse o ombro para que eu pudesse me lembrar que deveria me levantar e pegar o troco que o sujeito não me entregara quando passei pela roleta.

Alheado, sim. Só, não. Enquanto vinha com a vista pousada no movimento da cidade que desfilava para mim, estava também sonhando, distraído de tudo que acontecia ao redor. E é porque vinha aéreo que não estava abandonado. Sonhos são conjuntos de idéias itinerantes cuja maior propriedade é mesmo não nos deixar sozinhos. Sonhamos porque não suportamos a coisa da solidão.

Talvez seja por isso que, no Egito antigo, a mitologia rezava que os deuses haviam criado o sonho para apontar o caminho ao homem, uma vez que ele não podia prever o futuro. É esse, então, o motivo de sonharmos: adivinhar o que virá. E, assim, sonhamos de todas as maneiras e com tudo. Acordados e dormidos. Com riquezas e misérias. Coisas boas e ruins.

Eu, naquele momento em que olhava a vidraça de gotinhas e a moça bateu em meu ombro, encontrava-me em transe total com um certo devaneio. Sonhava que havia sonhado que podia ser feliz. Era isto mesmo. Na verdade, eu não delirava. Apenas me lembrava de um sonho que havia tido com tal intensidade que não houve remédio para ele, para tal quimera, a não ser tornar-se realidade.

Sim. Há sonhos que são definidos com tamanha energia que não conseguem escapar à possibilidade de desandarem reais. E só os deuses sabem o quanto havia rogado para que a felicidade me alcançasse e eu, numa tarde de primavera em que a chuvinha desse fina na vidraça de um ônibus, alcançasse enxergá-la de maneira trepidante.

No exato momento em que a menina tocou meu ombro, eu pensava que era feliz. Mas pensava também que o único defeito de tudo o que eu estava vivendo era não haver defeito algum. Foi então que este pensamento fez com que meu barco, que apenas há instantes havia zarpado para Ítaca, adernasse momentaneamente e eu passasse a temer o pior.

No entanto, depois que me levantei, peguei as moedinhas do troco e, quase numa prece, sentei-me de novo, percebi, aliviado, que o barco continuava na mesma direção, a toda vela. O que havia acontecido era o que sói ocorrer aos humanos que somos surpreendidos por alegria e fortuna intensas. Queremos acordar do sonho e dizer que tudo aquilo não pode ser possível.

No meu caso, contudo, a alegria era real. Absolutamente tangível. Tal felicidade, nos últimos tempos, passava as noites comigo. Acordávamos e, juntos, arrumávamos os lençóis da cama e fazíamos o desjejum sorrindo um para o outro. Depois, saíamos de mãos dadas pela cidade. Entre uma e outra coisa, colávamos nossas bocas apaixonadamente, inventando beijos que só existem mesmo nos sonhos. Meu mito havia se realizado, o barco zarpava decidido e reto, a chuvinha fina continuava a desenhar a vidraça do ônibus.

E o único defeito que eu podia vislumbrar era mesmo o fato de não haver defeito algum em tudo aquilo.

terça-feira, setembro 27, 2005

A uma mulher

Murilo Mendes

Não tendo podido te criar
Nem tendo sido criado por ti
Eu me vingo do destino enxertando-me no teu ser.
Jamais conseguirás te libertar de mim
Porque eu te sitiei com a chama do amor,
Porque rondei durante dias e noites o Coração de Deus
A fim de extrair dele o segredo da ternura.
Todos os que te olham pensam logo em mim,
Todos os que me olham pensam súbito em ti.
Eu sou tua cicatriz que nunca se há de fechar.
Eu te perseguirei até depois da minha morte
E virei a ti no murmúrio dos ventos, no lamento das ondas,
Na angústia e na alegria dos poetas meus sucessores,
Nas almas grandes limitadas pelo físico.
Sentado nas nuvens esternas eu te esperarei

E me nutrirei através dos tempos da nostalgia de ti.

domingo, setembro 25, 2005

Sobre as mágicas do amor

Ao apelidá-la carinhosamente de Sininho, não havia em minha cabeça outra intenção que não fosse mesmo o calor que vinha daquela mulher. Ela surgia em minha direção como se levitasse. Iluminada e feliz, batendo suas asinhas. O que me veio no momento foi a personagem fantástica de James Matthew Barrie. Uma esposa, uma menina apaixonada e que, com um poder imperscrutável, andava por aí a fazer mágicas boas e travessas, soltando estrelinhas por onde passava.

Uma fadinha perfeita, pensei, ao olhar para a mulher. Imaginei isso, chamei-a Sininho e ela me abraçou. Depois, desavisadamente, começamos a nos amar pela tarde a dentro, como se o mundo parasse para que nosso encantamento pudesse ser realizado sem feitiços maus e alheios. Assim vem sendo.

Contudo, chamar o amor pelo nome de uma fada, pelo menos para mim, é algo que me conduz a outras alturas que não apenas aquelas do carinho jocoso e singelo. Comecei a pensar e, desse modo, tentei ir ao próprio mito, para preenchê-lo e esvaziá-lo novamente, obtemperando.

Sininho, Morgana ou a própria Rainha Mab, de “Romeu e Julieta”, as fadas são seres aptos a simbolizar as capacidades mágicas da imaginação. Trata-se de criaturas que, operando as mais extraordinárias transformações, podem satisfazer, ou decepcionar, nossos desejos mais trepidantes.

No mundo helênico, talvez seja a figura da Moira aquela que estaria mais próxima daquilo que hoje chamamos fada. O significado mais denotativo de Moira é “quinhão”. Ou seja: o que cabe ou o que deveria caber a cada pessoa. Num sentido mais conotativo, a Moira é a personificação do destino de cada criatura. É por isso que, na tragédia de Ésquilo, Prometeu afirma que até mesmo Zeus tem sua Moira e, por isso, não pode fugir ao próprio destino.

Ao mirar a mulher que caminhava em minha direção com todos os seus poderes, não pensei em nada disso. Mas, agora, penso? E, assim, ao mesmo tempo em que meus devaneios fazem de mim um homem efêmero, um sujeito que tragicamente deve aceitar seu destino, reconhecendo seu quinhão, eles, esses mesmos devaneios, me fazem também enfrentá-lo.

Se minha fada Sininho é mesmo meu destino, minha Moira, a parte que me cabe, não me cumpre apenas aceitá-lo. É preciso, antes e sempre, lutar por tal destino para poder merecê-lo. Como se eu mesmo fosse um Ulisses que não quer mais do que regressar a Ítaca. E, por isso, aventura-se, erra, guerreia, ama.

Como um Peter Pan, talvez seja necessário voar para a Terra do Nunca e de lá jamais sair. Tudo para que a ilusão de que a cena da Sininho que flutua em minha direção, batendo suas asas e me entregando seu corpo e seu amor, repita-se sempre. Dia após dia. Assim, eu não temeria minha Moira, não temeria meu destino, não temeria as decepções.

Seríamos só eu, minha fada e aquilo que depende apenas de nossas mágicas de amor.

Confissão

Vou bater o primeiro prego, tá? Vou bater o segundo prego, tá? Vou bater o terceiro, tá? Esperaí. Deixa eu arrancar este primeiro que ele não ficou muito bem batido não. Tá meio torto. Isso. Calma. Tô tirando. Agora vamos lá de novo. Não mexe pra eu não errar a primeira martelada. O segredo está é na primeira martelada. Se ela dá errado, o prego entra torto, descambado pro lado. Aqui, não. Tem que entrar retinho. Serviço bem feito. Espera, não mexe. Fica quieto, satanazinho. Opa! Entrou direitinho. Isso. Isso mesmo. Agora vou tirar a fita da sua boca. Anda, pode gritar. Grita, porra. Berra. Isso. Berra. Assim. Assim. Doeu? Mas não exagera não. Não exagera não, caralho. Pode começar a contar tudo o que você sabe. Com calma, vai. Com calma.

Eu te amo, meu filhinho.

sábado, setembro 24, 2005

Sem alívio

Enquanto a mulher que amo dorme, estou aqui. Aproveitando um momento de intimidade própria, sentei-me à frente desta telinha e resolvi escrever sobre algo que me passou na tarde. Não é bem que tivesse decidido. A coisa veio a mim como uma necessidade. Algo capaz de justificar até mesmo a privacidade com que me regalo agora. Na verdade, sinto-me como se estivesse numa festa e me desse aquela vontade tremenda de me aliviar.

Então que saí discretamente, busquei um banheiro apropriado e me sentei ao vaso. O burburinho lá fora não foi interrompido, mas é imprescindível que me desligue por alguns instantes dele e faça aquilo que me é imprescindível fazer. Sei que a comparação é terrível, grotesca, mas creio que seu sentido escatológico acrescenta um significado metafísico àquilo que faço agora.

Escrevo exatamente como quem defeca. Busco a solidão e cada palavra despejada sobre a tela virgem me parece algo impuro, transgressor. Uma invenção que poderia até mesmo ser adiada se o desejo de alívio não fosse tão imperativo. Então, posso dizer que escrevo para acalmar as dores que me mexem por dentro. E também posso dizer que tal alívio é apenas temporário, pois logo o arroubo virá de novo e de novo e de novo.

Se pudesse, não escreveria. Não escreveria uma linha sequer e, assim, creio que estaria melhor. Mas não posso e, por isso, sentei-me aqui e devo escrever sobre algo que me passou pela tarde. E o que me passou esta tarde, vamos dizer logo de uma vez!, é que vim caminhando pela cidade de mãos dadas com o amor. As mãos bastante pegadas mesmo a umas outras mãos.

E, como isso estivesse acontecendo, senti medo, muito medo. Pavor de que aquelas mãos que no momento se davam às minhas fossem apartadas de repente. Pensei, então, que, por mais que tenhamos sido avisados do pecado, somos sempre destinados a ele. Como a Psiquê que, embora advertida pelo amante de que não poderia ver jamais seu rosto, não pôde deixar de ceder à tentação.

Arrebatada e entregue à perdição, Psiquê acendeu o círio e o levou ao rosto do amante para ver aquilo que lhe fora proibido ver. No entanto, se por um lado a interdição era apontada, por outro a transgressão também era inevitável. O destino de Psiquê já havia sido traçado e ela não poderia fazer mais nada. Paradoxalmente, a face revelada não traria o alívio pretendido.

E foi exatamente nisso que fiquei pensando com aquelas mãos entregues às minhas. Imaginei que, como a jovem e linda amante de Eros, eu também não pudera resistir à tentação e transgredira. Entreguei minhas mãos, aceitei as outras. E, caminhando pelo sol da tarde, pude enxergar a face poderosa e extraordinária do amor. Meu destino estava traçado. Eu não tinha culpa alguma nisso. E, também, não podia evitar.

Agora, meu amor dorme e eu, baldado, tento aqui me aliviar.

quarta-feira, setembro 21, 2005

O encontro

A mesa está posta. São apenas dois lugares. O homem entra cansado. A mulher já o esperava sentada. Não. Não é nada disso. Voltamos. Só mais um pouco. A mulher destecia o fio pela madrugada a dentro, enquanto o homem, moído, entregava o corpo à areia morna da praia e dormia. Depois, quando a manhã veio, o homem, indigente, foi até o palácio para ver a mulher.

Não. Também não é nada disso. Vamos agora para a frente. Vamos saltar a luta desse homem, o trabalho da mulher fiando e desfiando, o jantar em que os dois mal tocam a comida que está no prato, para se alimentarem só de olhares. Vamos esquecer tudo isso e ir direto ao ponto. Ao grão que finalmente vai ser plantado para, de novo, preencher o mito.

Sim. O homem e a mulher entram no quarto. A cama está perfeita e macia e eles se deitam. Uma mão toca a outra, os dedos se acarinhando. A penumbra não deixa que as miradas sejam vistas, mas o homem e a mulher sabem que ambos se encaram no escuro. E é porque não podem ver nada que, olhando-se um ao outro através de um véu denso, podem divisar uma paisagem ultra humana, além e aquém daquele momento.

Nesta noite, homem e mulher finalmente alcançam vislumbrar todas as outras noites. Enxergam, então, as guerras, as solidões, as vertigens, as viagens, o fio que é tramado e destramado, a areia morna da praia, o arado, o jantar e, finalmente, a cama macia. Os dedos de um e de outro que se acham para, em carinho que não desiste, principiar a descobrir que o verdadeiro encontro começou na espera.

E tudo é decidido, como se deuses conspirassem para aquilo.

domingo, setembro 18, 2005

Sólo se vive una vez

A guapa me perguntou Você me quer? Olhei pro meu relógio e disse pra mim mesmo O que será que esta puta tá querendo? Não contestei nada. Ela tá na reunião dela e eu tô na minha. Mas, durante o resto do dia, durante assim aquilo que vai depois da digestão e a hora em que os seres humanos não gostamos de nada do que resta na vida, fiquei pensando que merda era aquela. Que merda era aquela, cacete. Que merda era aquela, caralho. Não estou perguntando, Carvalho. Estou só te dizendo. Entende só a coisa? Agora sim estou perguntando:

¿Sólo se vive una vez?

quinta-feira, setembro 15, 2005

A espera

Sinceramente, não me recordo onde li que Ulisses, o herói grego, arava a areia de uma praia deserta. No entanto, esta imagem ficou em minha cabeça de tal maneira que cheguei mesmo a utilizá-la num final de capítulo de minha primeira novela: Falar. Depois de escrever o texto, é claro que saí à procura do dicionário ou artigo em que havia encontrado tal alusão. Não achei. Mas ficou lá assim mesmo.

Ainda hoje, tal idéia – a de um homem arando algo que não faz sentido arar – não sai de meus pensamentos. O que me parece é que, de uma ou outra forma, o viril e astuto herói de Ítaca se redime de todas as guerras e mortes que pesam em suas costas ao cultivar a areia da praia. Posso até mesmo ver a figura consumida de um anĕr velho e cansado das batalhas de Tróia, ou de suas odisséias pela Trácia, enxugando o suor que lhe goteja do rosto tendo o Egeu como fundo. O lugar poderia ser a ilha de Éolo, e nosso herói parou apenas um instante, a fim de recuperar suas forças para voltar a correr a charrua pela parte da praia que ainda falta ser sulcada.

O que imagino é que, com esse trabalho trepidantemente estéril, Ulisses também tenha procurado se redimir dos longos anos em que deixou sua Penélope a tecer e destecer a mortalha de Laerte. A vida entre os casais, sobretudo hoje, em que os fios da harmonia parecem completamente perdidos da meada, revela-nos sempre algo desse Ulisses que lavra o infértil e dessa Penélope que espera fiando e desfiando.

Explico. Enxergar o outro, creio, é avistar-nos a nós mesmos. Esperamos do outro não aquilo que ele é, mas o que queremos que ele seja ou o que nós próprios gostaríamos de ser. Por isso, as odisséias nos relacionamentos. Por isso, o tecido que deve ser desfeito a cada noite. É para manter vivas suas esperanças de encontrar seu Ulisses que Penélope desfaz a mortalha que fiou. É para redescobrir sua Penélope que Ulisses lavra um solo que jamais poderá dar frutos. Então, e isso parece terrível, o que avistamos no outro é nossa própria esterilidade e, com medo dela, enlouquecemos na espera e no áspero.

No fundo, em cada circunstância de encontro, rogamos descobrir Penélopes e Ulisses. Mulheres capazes de arar o inútil e homens capazes de tecer o que no dia seguinte deverá ser refeito. Naquilo que buscamos, acredito que o que sempre irá durar é mesmo a chama essencial. Aquela chama que arde e que não vemos. Assim é o Ulisses que também espera, talvez para se redimir de quem por ele arou o impróprio. Assim, a Penélope que venceu guerras e moeu o áspero, talvez para se perdoar de quem por ela passou as noites desfiando. Assim, a espera. Assim, o amor. Arar, fiar, desfiar e amar podem ser mesmo aquilo para o qual não encontraremos nunca explicação.

E para o qual talvez não estejamos mesmo preparados.

segunda-feira, setembro 12, 2005

Flagrantes da criação

Soraya Belusi
Uma faixa amarela indicava o lugar marcado. Eram 19h, quando nos receberam no portão. Um corredor de paredes vermelhas desemboca no fundo do galpão, onde ao redor de uma mesa, aguardava um grupo de atores. Sobre a mesa, livros. Entre eles, “O Poder do Mito”, cuja ligação com os outros elementos descobriremos adiante. Uma cena da vida real, de um espetáculo em construção, encontros que acontecem bem antes de soar o terceiro sinal.

Trata-se de um flagrante de bastidor, ação planejada pela equipe do Magazine, com o total consentimento de dois importantes grupos de teatro de Belo Horizonte. O primeiro deles, a Odeon Cia. Teatral, com sede no Barro Preto – indicada pela faixa amarela – está, sob o comando do diretor Carlos Gradim, mergulhada nos estudos do texto “O Inferno”, dramaturgia de Edmundo de Novaes, inspirada em “A Divina Comédia” e “Grande Sertão Veredas”. A Cia. Trama, acompanhada do diretor e dramaturgo Eid Ribeiro, escancarou para a reportagem o processo de construção de “Os Três Patéticos”, espetáculo com estréia marcada para o dia 7 de outubro. São momentos distintos no andamento da montagem de cada uma das companhias.

Poderíamos dizer que a Odeon ainda está em fase de reconhecimento do material que tem nas mãos e nas mentes para poder “levantar a cena”. Mas esta primeira abordagem da dramaturgia, que muitos denominam estudo de mesa, seguiu caminhos pouco convencionais. O elenco foi dividido em dois grupos. Três atores para cada lado. Ao lado esquerdo do diretor, Geraldo Peninha, Marcelo do Vale e Renata Cabral formam o time da defesa. À direita, Rafael Neumayr, Marina Arthuzzi e Cynthia Paulino são os acusadores. O texto está em julgamento. O diretor é o juiz. A acusação deve encontrar os pontos mais questionáveis do texto. E a defesa, os principais trunfos. Parece brincadeira, mas tudo é levado e realizado muito a sério.

“Na minha cabeça, existe um fundamento. Esta (“O Inferno”) não é uma história linha, não traz um caminho muito claro para a encenação, e até mesmo para a interpretação. Temos que criar toda uma atmosfera imagética para começar um estudo prático”, explica Gradim.

Antes de dar a largada para o embate, o diretor nos apresenta os personagens de “O Inferno” e seus respectivos intérpretes. Marcelo do Vale é o “Doutor”, Renata Cabral é a “Santa”, Cynthia Paulino, a “Moça”. Rafael Neymaur fará o “Danado”, Marina Arthuzzi vive a “Negrinha”, Geraldo Peninha, o “Capiau”. “Faltam os atores para os personagens ‘Criatura’, e para a ‘Velha’, cujo convite está sendo feito agora, pela reportagem, à Wilma Henriques, com quem quero trabalhar há muito tempo. É apenas uma cena, mas digna de sua grandeza, fechando o espetáculo”, adianta.

É o segundo round deste julgamento, que se iniciou na semana anterior, com os atuais times jogando no lado contrário, ou seja, quem era acusação, agora é defesa, e vice-versa. “Todos a postos”, o diretor dá o tom de formalidade. “Dentro da nossa lógica de trabalho, começa a acusação. Dou cinco minutos, para explanações, e depois a gente inverte”, dita as regras.

A acusação toma de assalto seus cartazes. Em cada uma daquelas imensas folhas de papel Kraft, esclarecimentos sobre o “passo-a-passo” da trajetória do herói, segundo Joseph Campbell, autor do citado “O Poder do Mito”.

Surgem muitas as indagações – como a que tenta revelar o jogo e o objetivo do herói –, mas não faria sentido colocar aqui, tamanha é a profundidade que todos estão mergulhados em relação ao texto. Mas uma frase de Peninha é preciso destacar: “Além do mero prazer, o teatro tem algo a dizer. Se não tiver isso, não há porque montar. Para defender esse texto, quero crer em uma razão e tenho argumentos sólidos.” E segue o julgamento.

É chegada a hora do veredicto: “A acusação mais defendeu que acusou”, afirma Carlos Gradim. Agora, temos que ver como transformar isso em linguagem cênica, lembra. “E chegamos a uma tragédia moderna: um texto que não leva, a priori, a lugar algum. Hoje, me vieram muitas imagens, inclusive da encenação. Primeiro, na questão da dor. São os humanos que a sentem. O texto começa em um tom mais mitológico e vai se humanizando”, contextualiza Gradim, dando prosseguimento ao raciocínio.

Muito papo rolou, até o fim do ensaio. Com a palavra, o diretor-anfitrião: “Agora, temos um caminho de imagens para começar. Já podemos até ir para o chão. Não temos a platéia, nem a cena posta, com as metáforas constituídas. Isso é um outro momento".

- caderno Magazine, jornal O Tempo, 11 de setembro de 2005

domingo, setembro 11, 2005

Ana e Eco na trajetória do Falar

Denise Gomes
Prêmio Casa de Cultura Mário Quintana, Falar é o primeiro romance de Edmundo de Novaes Gomes, já lançado em Porto Alegre, em 10 de novembro de 2003, na 49a Feira do Livro, pela Editora Nova Prova (Romance: Falar, de Edmundo de Novaes Gomes, Nova Prova, 2003, R$ 28,00) e que terá seu lançamento em Belo Horizonte no próximo dia 3 de dezembro de 2003, na sala multiuso do jornal Estado de Minas, Av. Getúlio Vargas, 291, das 19:00 às 22:00 horas.

O romance de Novaes encerra em si uma polifonia de vozes, que numa leitura atenta e minuciosa pode representar uma única voz: a do narrador: “Falar, falar, falar. Todo mundo fala, fala, fala. Por isso, agora também resolvi falar, falar, falar. Falar pelos cotovelos. Falar à beça. Falar à vontade. Falar contra a vontade. Falar até. Falar de mim. Falar de você. Falar de amor”.

Como no mito de Eco, essa voz polifônica nada mais é que a repetição de uma mesma voz, ou das falas finais que, num fechamento de capítulo, abrirão o próximo. Como se sabe, Eco apaixonou-se por Narciso e, não suportando a indiferença cruel de seu amado, morre de amor, sobrevivendo-lhe a voz, que repetia as últimas sílabas da palavra. Assim, Eco e Ana, a protagonista do romance, são heroínas de seu tempo, símbolos de um amor que mata e, como resultante, fala, fala,fala, num eco ensurdecedor.

Falar: repetição incansável da dor de uma paixão perdida, perversa, assassinada. E, como autor de seu tempo, Edmundo faz da linguagem personagem principal de sua obra. Nesse sentido, coloca-nos de joelhos a implorar um final feliz: não para as personagens da trama, mas para nós mesmos, pobres mortais. A narrativa é forte, densa e tira o fôlego do leitor, que se domar sua perplexidade até a página 30, não conseguirá desgrudar seus olhos do texto.

David Harvey, em estudo sobre a transição da modernidade para a pós-modernidade diz que “o que aparece num nível como o último modismo, promoção publicitária e espetáculo vazio é parte de uma lenta transformação cultural emergente nas sociedades ocidentais, uma mudança de sensibilidade para a qual o termo ‘pós-moderno’ é, na verdade, ao menos por agora, totalmente adequado. A natureza e a profundidade dessa transformação são discutíveis, mas transformação ela é”. Edmundo faz parte dessa transformação. É ler para crer.

- jornal Estado de Minas, 1° de dezembro de 2003

Sorry, Frufru

Ai, minha pim. Meu coração disparou tão intenso! Até os vizinhos sentiram. Foram lá, reclamar com o porteiro. De jeito nenhum, Frufru. De maneira alguma que eu te creio uma pessoa má. Por que você diz isso? Será que agora é sua visão que está nublada, as retinas congeladas e esses seus olhões de ressaca vidrados como os daquelas santas de Notre Dame? Nem me diga uma coisa dessas, minha pimpolha. Logo eu, que te adoro tanto.

Mas o sorry aí de cima não tem nada a ver com isso que você falou e que eu acho mesmo um absurdo. Peço desculpas é por mim. Fui dormir com a alvorada de maravilhas e, antes de começar a sonhar com você, ainda pensei em você. Sabe o que pensei? Naquilo tudo que viemos nos falando. As coisas chegaram como um turbilhão na minha cabeça e eu não sei o que seria de mim se eu não fosse prevenido. É. Se eu não fosse acautelado, uma vez que, logo após desligar o telefone, tomei um remedinho daqueles que você sabe.

Aí, não teve jeito. Acabei dormindo mesmo. E sonhei. Parecia mais um delírio. Primeiro, a coisa começava como uma gangorra que levitava baixinho. Depois, a zanga-burrinha foi indo mais depressa, mais depressa, mais depressa. Tudo na mesma medida em que à minha cabeça, esta minha cabecinha aqui repleta de nervosias, assomavam umas coisas estúrdias.

Olha, Frufru: primeiro foi de novo aquilo de você falar que eu sou louco e o abandono em que você deixou um pobre coitado porque ele era maluco também. Pra te falar a verdade, fiquei morrendo de dó do moçó. Mas isto não é tudo. Na seqüência, veio também você virando pra mim e falando “Puxa, mas como o senhor é feio!”. Aí, nesse meu sonho meu, eu olhava pra um espelho e via a minha cara e minha cara não era a minha e eu falava com você “Cacete, mas se eu sou o Castro Alves!”. E, então, tocou uma sirene altíssima. Um alarme estridente e interior, com a minha Frufruzinha chegando e dizendo, um depois do outro, dois versos sem querer. Dois versos que saíram assim do nada e me tocaram como uma poesia de fascínios e sortilégios:

Longe.
Longe de mim.

Então, minha pimpim, nesse momento teve uma coisa até que boa: eu acordei. Não do remedinho, que este é forte pra xuxu (risos). Mas do sonho que eu estava sonhando no meu sonho. E é por isso agora que quero te pedir desculpas. Quero que você releve se eu for doido, quero que você releve se eu não for o Castro Alves, quero que você releve se eu nunca mais puder viver longe de você. É que eu acho que tudo isso é bem capaz de acontecer. Por isso, já digo “Excuse d’avance”.

Acho mesmo que aquele cantor que você detesta está certo: “De perto, ninguém é normal”. Só que a vida que não segue nunca em linha reta é a minha. Profana e sagrada ao mesmo tempo. Acho, com toda sinceridade, que as coisas não são nunca certas da maneira que a gente quer. E que o caminho da sombra pode até ser mais confortável, mas ensina muito menos. E é por essa vereda de pedras que eu estou vagando agora. Fala a verdade, Frufru: o que é que eu posso fazer?

Falar que é tudo uma bobagem? Dizer que tudo é mentira? Que isso aqui que está doendo pra caramba não existe? Que eu posso ver este fogo que arde? Que minha inteligência segura todos os tsunamis? Que dou conta de estilhaçar o espelho do sonho que estou sonhando? Até que tentar eu tento, Frufru. Tem horas que faço o possível pra acordar. E, então, acordo mesmo, como aconteceu hoje. Acordei ao meio-dia. Sabe pra quê, minha pim? Sabe pra quê?

Só pra continuar sonhando com você.

Um beijo.

sexta-feira, setembro 09, 2005

El amante granadino

Na conquista dos mouros, na reconquista de Fernando e Isabel de Castela, nas lutas intermináveis em que o país se debateu desde então, o grande drama da Espanha sempre foi o da unidade nacional. O século XX espanhol assiste ao paroxismo da mais cruel guerra civil. Todos saíram derrotados. O país quase desaparece sob o fascismo avassalador de Francisco Franco e seus asseclas, que se auto-intitulavam forças nacionalistas.

Se há um conceito do qual a ideologia fascista é inimiga, é esse de nação. Pois Nação é povo, corpo cultural, social, político e econômico, devidamente formado por indivíduos integrados por interesses comuns: independência, liberdade, promoção e realização de suas virtualidades como seres humanos. Contra o conceito libertário de Nação, o fascismo inventa o conceito de Pátria, união apregoada em meio ao espalhafato de hinos e bandeiras e uniformes impecáveis, e não deixa espaço para o concerto das consciências. O fascismo pressupõe submissão e silêncio de todo o povo a uma elite dirigente, resultando na morte física e simbólica do povo e desaparecimento da consciência crítica.

Como poderia então falar de Federico García Lorca sem me ater ao conceito de Nação e sem denunciar o regime hediondo que fez desaparecer um dos maiores poetas de língua espanhola do século XX? Ele foi o grande poeta nacional da Espanha moderna. Fez poesia em diversos dialetos. Sua obra congrega o conjunto de sentimentos nacionais na aguerrida e viril natureza do povo ibérico como também na sua languidez. Foi um homem-síntese. Quando fervia a agitação política, colocou sua literatura a serviço da República. Foi coerente em tudo - até em sua morte. Ao eclodir a guerra civil espanhola, foi dos primeiros a ser executado, com o indescritível prejuízo da poesia. E se o artista sobrevivesse?

Lorca nasce em 05 de junho de 1898, na aldeia de Fuente Vaqueros, sob jurisdição de Granada, situada num vale irrigado entre colinas, denominado vega. Herdou da mãe a inteligência e do pai o temperamento sanguíneo e apaixonado. O ambiente humano e natural destes primeiros anos deixaram uma marca indestrutível na sensibilidade do futuro poeta. Mais tarde, ele viria a escrever o seguinte: “Toda a minha infância se concentrou na aldeia. Pastores, campos, céu, solidão. Uma simplicidade total. Fico surpreso, muitas vezes, quando certas pessoas pensam que as coisas na minha obra são ousadas improvisações de minha autoria, liberdades de um poeta. Nada disso. São pormenores autênticos e parecem estranhos, na opinião de muitas pessoas, pelo fato de não ser freqüente abordarmos a vida de um modo tão simples e direto: olhando e escutando. Uma coisa tão fácil, não é? (...) Tenho um enorme depósito de recordações da infância na qual posso escutar as pessoas falando. Isto é memória poética e confio nela implicitamente.” (Obras Completas, Aguilar)

Federico pertencia a terra e ao povo, na vega não havia qualquer diferenciação lingüística que separasse ricos e pobres, camponeses e proprietários rurais. Lorca herdou todo o vigor de uma linguagem que tem origem na terra e se expressa com extraordinária espontaneidade. É suficiente escutar os habitantes deste vale granadino falando e observando seu uso muito colorido de expressões coloquiais para se compreender a linguagem metafórica do teatro e da poesia de Lorca (Yerma, Doña Rosita la Soltera o El Lenguaje de las Flores, Bodas de Sangre, Romancero Gitano),que parece tão notavelmente original, tem origens numa consciência natural, antiga, coletiva, mágica. Na natureza - árvores, montanhas, cavalos, lua, flores e homens - se relacionam intimamente, configurando o equilíbrio do mundo vivenciado em que sofrimentos e alegrias podem até mesmo se corresponder.

A paisagem de grande parte da obra de Lorca é sensual, antropomórfica e participa da ação do homem: a lua pode materializar-se mulher defunta frente aos olhos assustados de uma criança, as folhas da oliveira empalidecem de medo, a primeira luz da manhã são tamborinos de vidro ferindo a madrugada. Trata-se de um mundo de estranhas metamorfoses, mundo mítico de vozes misteriosas, sussurros na noite. Extremos mundos do primeiro beijo ao primeiro pássaro morto na ramagem.

Lorca imortaliza a vega e Granada em sua obra, mas não o faz num sentido localista. Sua obra alcança universalidade, pois soube traduzir a trágica existência e a irremediável finitude, que rondam o homem, temas universais, transcendendo, com sua poesia e teatro, fronteiras geográficas, credos, raças, ideologias. A vega corresponde simbolicamente ao sertão, aos pampas, à charneca, ao deserto. Antes de tudo, a obra é universal quando não se separam arte e vida. Que seria a arte sem vínculo compromisso com a vida? Arte não seria, arremedo, falsificação grosseira. E Lorca sabia o totalitarismo da Espanha franquista e seu desejo de trair a vida. Sua produção artística incomodou os falangistas e foi alvo da censura mais torpe porque se comprometia com o despertar da consciência do povo espanhol para o que os constituía. Sua poesia e teatro reverberam a vida e com isso permitem ao povo o reconhecimento indubitável.

Ao longo da história, dispomos de inúmeros exemplos de pessoas, dentre elas, artistas que sucumbiram sob a atrocidade do poder. Poderes ilégítimos que as calavam simplesmente porque a coerência e vigor diante da vida tornavam-se uma afronta que não conseguiam suportar. A propósito, contra esta maquinaria do totalitarismo, cinqüenta e quatro anos depois da execução de Lorca, o escritor cubano Reinaldo Arenas registrou que os governantes do mundo inteiro, a classe reacionária que está sempre no poder em qualquer tipo de sistema levanta-se contra a população que deseja somente viver, e assim inimiga do dogma e da hipocrisia política corre o risco de desaparecer, vítima das calamidades criadas pelos poderosos.

DESPEDIDA

Si muero

Dejad el balcón abierto

El niño come naranjas
(Desde mi balcón lo veo)

El segador siega el trigo
(Desde mi balcón lo siento)

Si muero
Dejad el balcón abierto

(Canciones, 1927)

ADELINA DE PASEO

La mar

no tiene naranjas.
ni Sevilla tiene amor.
Morena, qué luz de fuego.


Préstame tu quitasol.
Me pondrá la cara verde,

zumo de lima y limón,
tus palabras, pececillos,
nadarán alrededor.

La mar no tiene naranjas.

Ay, amor.
Ni Sevilla tiene amor!

(Andaluzas, 1921-1924)

CASIDA DE LA ROSA
a Angel Lázaro

La rosa

no buscaba la aurora:
casi eterna en su ramo,
buscaba otra cosa.

La rosa

no buscaba ni ciencia ni sombra:
confín de carne y sueño,
buscaba otra cosa.

(Diván del Tamarit, 1936)


- publicado por Hermana de Poetas - setembro de 2005

quinta-feira, setembro 08, 2005

Dear Frufru,

Muito. Muito feliz mesmo, minha linda Frufru. Mas não é por isso que você está achando não, pimpolha. Imagina só se eu ia ficar neste antecéu todo só porque te vi passando hoje no meio da rua, com seu vestidinho rendado. Não é nada disso. Minha alegria eu não posso explicar. Mesmo porque, você já sabe!, ela nem é assim tão duradoura. Minha ciclotimia não é mais segredo pra você. Então, deves imaginar que eu sou mais ou menos como minha escrita: promiscuidade de pessoas do discurso, paraíso e inferno, ternura e dureza, afoiteza e timidez. Uma ansiedade tremenda, que eu nem sei como lhe contar, minha Frufru.

Mas, no caso, o único que posso fazer é confessar: fiquei mesmo perene. Por um instante, meus olhos se congelaram. As pupilas se dilataram e os olhos inteiros foram congelados. Sabe? Aquele buraco negro imenso aberto, conduzindo a um infinito de dimensões inalcançáveis, que talvez não possa nem mesmo ser preenchido. De maneira que aqui estou eu, Frufru. E o que passa por minhas retinas traz uma imagem embaçada, nublada, cansada. Neblina pura. Já viu uma coisa dessas?

Talvez você possa pensar que são devaneios o que vivo. Mas não são. Acredito que não. Sua imagem no toucador me parece tão real. Passando um batonzinho nos lábios. Mirando-se no espelho. E os pernocões, hein, Frufru? Talvez você seja mesmo um mito. Linguagem. Linguagem que tem lugar em um nível muito elevado, e onde o sentido chega, se me é lícito dizer, a decolar do fundamento lingüístico sobre o qual começou rolando. Risos.

E este mito, Frufru, não se preocupe, eu estou sempre esvaziando. Despejando para tornar a encher. Sabe por que, minha linda? Talvez porque, a mim, o seu mito me pareça muito primitivo. Desses de primeira geração. Como se você fosse um mar, Frufru. Um oceano inteiro. E cada vez que eu terminasse de te esvaziar pra encher minha piscininha eu também percebesse que você tornou a se encher de novo, com a inundação acontecendo de maneira alucinante e impenetrável, devastadora.

Não é mesmo assustador? Você passando ali, do outro lado da rua, andando imprecavida. Rebolante. Que susto que eu tomei! Parei com meus olhos moídos e esperei pra ver se você ia fazer alguma coisa de imprevisto. Sei lá. Algo tipo dançar, sair cantando, gritar. Mas você não fez nada. Continuou seu caminho. Foi por isso que eu fiquei mais feliz, confesso. É que como você não parou e fez extravagâncias, eu dei conta de perceber que seu caminho era humano, como o meu, e devia estar te conduzindo talvez para o trabalho ou, quem sabe, pra frente do seu toucador. Pra frente dessa sua mesinha em que você tem o mundo à sua disposição e pode se transformar nas Helenas mais belas, seduzindo, com esse seu rebolar cultural, uma parte da humanidade que não consegue colocar a prudência em primeiro plano.

Sim, Frufru. É verdade. Eu não fui precatado. Me deixei levar. Me deixei e me deixarei caminhar sempre por esse paradoxo que você é: brisa e furacão, tristeza e alegria, riso e choro, dia e noite, súdita e rainha, silêncio e explosão, velhice e juventude. Essa coisa louca que é você em frente ao toucador. Por isso, minha pimpolha, vou ficar aqui sentadinho, quase morto, esperando. Aguardando o memento de você deixar esse seu espelho um minutinho só e vir se olhar em outro. Neste espelho das minhas pupilas cansadas, quentes e congeladas, dilatadas. Pode parecer doideira, Frufru. Mas quero sim. Quero muito me enxergar em você.

Um beijo.

PS: depois te falo aquilo.

O risco é necessário

Há algum tempo, Edmundo de Novaes se dedica ao teatro em Minas Gerais. Foi ele quem adaptou o texto de Noites brancas, a partir de traduções do português e francês do clássico de Dostoievski. A montagem– dirigida por sua irmã Yara e estrelada por Débora Falabella e Luiz Arthur – faz sucesso em todo o País. Jornalista, escritor e professor da PUC Minas, Edmundo foi premiado, recentemente, no 5º Concurso Nacional de Dramaturgia de Porto Alegre. Para ele, falta arrojo a diretores e produtores em Minas: textos de novos autores não são encenados e ninguém quer se arriscar. “Falta acreditar e oferecer oportunidades”, afirma.

Qual a importância do Prêmio Carlos Carvalho que você ganhou, conferido no 5º Concurso Nacional de Dramaturgia de Porto Alegre?
Edmundo de Novaes – Trata-se de um prêmio nacionalmente reconhecido, que chega à quinta edição com nada menos de 249 concorrentes. A importância em estar entre seus vencedores é enorme para mim. Para teatro, já havia feito traduções e adaptações, como a de Noites Brancas, de Dostoievski. Jocasta tirana é, na verdade, meu primeiro texto original adulto. Antes, com The Adamms, havia escrito um texto original infantil, aproveitando apenas as personagens. E é muito legal ganhar um prêmio como este logo assim, de cara, ainda mais com um texto difícil. Outra coisa é o fato de estar recebendo um prêmio em Porto Alegre, pela segunda vez. Em 2003, fui o vencedor do Prêmio Casa de Cultura Mário Quintana, com meu primeiro romance, Falar.
De que trata a peça Jocasta tirana?
EN – No texto, Jocasta é a figura centralizadora e a história se passa no transcurso de uma noite. A última noite entre este casal que – filho e mãe, marido e mulher – teve nada menos que quatro filhos. A última noite dos dois, antes que os cidadãos de Tebas venham bater à porta do palácio, exigindo soluções para a peste que arrasa a cidade. Na verdade, esta noite antecede aquilo que já conhecemos a partir do mito e da tragédia incomparável de Sófocles. Jocasta tirana é uma leitura heterodoxa do mito de Édipo, que busca trabalhar a tragédia a partir da descentralização de alguns de seus pontos determinantes, sem, no entanto, deixar de reconhecer os preceitos definidos por Aristóteles em sua Poética.
Como você vê a dramaturgia feita em Minas Gerais?
EN – Guiomar de Grammont, Rogério Falabella e Sérgio Abritta, além de outros, estão aí para, com o talento que lhes é inerente, representar o teatro escrito em Minas. Recentemente, tive a oportunidade de ter um pequeno texto meu selecionado para o Festival de Cenas Curtas do Grupo Galpão e gostei de algumas coisas que vi. Contudo, creio que ainda falta a produtores e diretores mineiros acreditarem mais em autores não consagrados, novos.
Faltam incentivos para o setor no Estado?
EN – Falta acreditar e oferecer oportunidades, sem deixar de proporcionar qualidade. No que se refere à dramaturgia de uma maneira específica, acredito que ainda se monta muito pouco os autores novos. Não apenas em Minas, mas no País. As últimas peças do Grupo Galpão, o mais conceituado de nosso Estado, são adaptações ou textos já consagrados. Não vejo nada de mais nisso. Eu mesmo fiz a adaptação de Noites brancas e estou escrevendo, junto com a Guiomar de Grammont, a do Inferno, de Dante, para a Odeon Companhia Teatral. Mas acho que as pessoas que fazem teatro com qualidade preferem não arriscar. Será que é porque nossa dramaturgia também não oferece uma qualidade compatível? O próprio Jocasta tirana foi inscrito na lei de incentivo do Estado e do município e não obteve aprovação.
O que poderia ser feito aqui, tendo em vista experiências de outros estados?
EN – Não sei. É difícil falar sobre isso. O próprio Grupo Galpão já faz, com o Festival de Cenas Curtas. Mas ainda acho que Minas anda muito devagar quando o assunto é oferecer oportunidades de participação cultural não apenas para os artistas, mas para a população. Comparando com outros estados e saindo um pouco do teatro, poderíamos citar a Feira do Livro de Porto Alegre e o Salão do Livro de Belo Horizonte. Enquanto os gaúchos fazem a feira numa praça que à noite é freqüentada por prostitutas, aqui fazemos um salão, num local fechado, como se a cultura tivesse que ser enclausurada, para poucos. O mineiro ainda é muito elitista.
O modelo adotado pela Campanha de Popularização do Teatro de BH divide opiniões. Questiona-se a qualidade de muitas peças. Você concorda?

EN – Como já disse, prefiro uma cultura que, pelo menos, busque a utopia da dissidência, do herege. Não morro de amores pelo ortodoxo. Quanto à qualidade, tomando aqui seu sentido de identificação estética, isso é algo que depende de quem vê. Aquilo que é bom para mim pode não ser para você. Sou muito tolerante. Mas é claro que não me passa despercebida a quantidade de montagens meramente reprodutivas e sem reflexão estética encenadas durante a campanha.

- jornal Estado de Minas, caderno Pensar, 2 de abril de 2005

quarta-feira, setembro 07, 2005

Cantiga do neno do e-mail

Digo sempre para meus alunos que eles são de uma geração epistolar. Isso quer dizer que, se São Paulo vivesse hoje e contasse a mesma idade que tinha quando foi assombrado pela boa-nova na curvinha do estradão, teríamos então E-Mails de São Paulo aos Romanos, ou aos Tessalonicenses, ou aos Belo-Horizontinos. Eu, depois de entrar de um modo a bem dizer definitivo nessa onda chamada virtual - e é preciso repensar este adjetivo de dois gêneros para aquilo que estamos fazendo na web! - eu sigo dando passos e tomando sustos.

Ao criar este blog, uma das paulinas com quem convivo cotidianamente tanto na rede quanto no calor da hora de uma sala de aula, a garota Thaís Palhares, reclamou logo: "-Pô, Edmundo, você precisa liberar os comentários!" Não sabia que precisava. Mas, avisado que fui, tratei logo de fazê-lo. E o resultado aqui está. Aqui mesmo, neste espaço confessional. Recebi alguns posts anônimos. Não entendi nonada.

Curioso, ainda tive a boa fé de responder a um deles, pedindo à pessoa que se declarasse. Inútil. São Paulo, hoje, pode se dar ao luxo de escrever idéias e não se identificar. Melhor: assim, não é preso. No entanto, das mensagens recebidas, uma me deixou feliz. Tratava-se de uma poesia. Um poema de Federico García Lorca, escrito no melhor galego. Lembrou-me logo um professor que tive em Bilbao, natural de "A Estrada", uma cidadezinha que fica entre Pontevedra e Santiago de Compostela.

Depois das aulas, tomando cañas num botequim, ele me disse esse mesmo poema. Na hora, achei que o prof estava querendo agradar seu aluno brasileiro, tentando traduzir a poesia do castellano para o português. Não. Era uma outra língua e eu fazia meu primeiro contato com o galego, um idioma que também possui a palavra saudade. Fiquei maravilhado. Agora, ainda com a boa-nova anônima na cabeça, sou mesmo capaz de ouvir José Luiz, o professor, declamando Federico, o poeta.

Quanta saudade! Minha filha Lu está aqui a meu lado, fazendo costurinhas. Acabamos de chegar do almoço e, no caminho, na porta de um edifício da avenida Augusto de Lima, vimos uns pombos na gaiola. Maria Luiza me perguntou porque eles estavam presos. Como eu, que não conhecia o galego, minha filha ainda não havia visto um pombo preso. Inventei logo: "-São pombos-correio". Lu também não sabia o que era esta espécie de bichos. Outra vez, inventei: "-São pombos que levam e-mails".

O papo continuou. Continuou e eu agora estou aqui pensando nos desígnios de Deus e da natureza. Em São Paulo e nos pombos anônimos. Não dá pra ser absoluto em nada mesmo neste nosso mundo de teias de aranha. Um mundo velho como uma cartinha e jovem como um e-mail. Entre uma idéia e outra, ainda escuto, absorto e oceânico, a boa-nova da poesia de Federico. Tudo se mistura na teia.


Tudo.

CANTIGA DO NENO DA TENDA
-Federico García Lorca

Bos Aires ten unha gaita
sobro do Río da Prata,
que a toca o vento do norde
coa súa gris boca mollada.
¡Triste Ramón de Sismundi!
Aló, na rúa Esmeralda,
basoira que te basoira
polvo d’estantes e caixas.
Ao longo das rúas infindas
os galegos paseia
bansoñando un val imposibel
na verde riba da pampa.
¡Triste Ramón de Sismundi!
Sinteu a muiñeira d’agoa
mentras sete bois de lúa
pacían na súa lembranza.
Foise pra veira do río,
veira do Río da Prata.
Sauces e cabalos múos
creban o vidro das ágoas.
Non atopou o xemido
malencónico da gaita,
non víu o imenso gaiteiro
coa boca frolida d’alas;
triste Ramón de Sismundi,
veira do Río da Prata,
víu na tarde amortecida
bermello muro de lama.

terça-feira, setembro 06, 2005

A Serpente - de Nelson Rodrigues

Estréia nesta quarta-feira, 7 de setembro, na Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, a montagem dirigida por minha irmã, Yara de Novaes, de "A Serpente", de Nelson Rodrigues. No elenco estão Débora Falabella, Mônica Ribeiro, Alexandre Cioletti, Augusto Madeira e Cyda Morenyx. Cenário e figurinos do André Cortez. Trilha do meu querido Morris Piccioto. Direção de produção do Gabriel Fontes Paiva, casado com minha sobrinha/afilhada jornalistíssima e escritora de Sampa, Silvia Gomez. Se estiverem no Rio, dêem uma conferida.

segunda-feira, setembro 05, 2005

Íssimo

Ainda bem que Fernando Pessoa existe. Outro dia até mandei esse poema pra uma pequena que adora chocolates e que, como eu, também é dada à metafísica. Trata-se de um Álvaro de Campos. E me traduz bacaninha.

(9-10-1934)
O que há em mim é sobretudo cansaço -

Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço asssim mesmo, êle mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amôres intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas tôdas -
Essas e o que falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Êste cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum dêles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para êles a vida vivida ou sonhada,
Para êles o sonho sonhado ou vivido,
Para êles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...

domingo, setembro 04, 2005

Amor: Amor

Não era nada não. O sujeito é que era meio assim. Desprovido? Foi por isso que ela ficou daquele jeito. Encostou a cabeça assim no sofá e foi sumindo. Não tava mesmo pensando em nada. A textura macia do sofá. Não queria mais inventar histórias, nem brigar, ter filhos, namorar. A vida, meu Deus!, bem que podia ter sido sempre só isso. O gostoso da cabeça encostada no sofá e a certeza de que tudo era alheio, perdido. Essa paz precária. Só tinha mesmo vontade era de que até o suave do sofá fosse sumindo. O sujeito balangando na rede e olhando pra ela. Ela sumindo, sumindo. O sujeito sumindo, sumindo. O sofá, a rede, as brigas que um dia viriam, os meninos falando alto, as histórias sobre coisa nenhuma, os namorados, as namoradas, os bichos grudados na parede, o medo, os risos. Que tudo fosse sumindo, sumindo. Até não... Ah! Deixa pra lá. Claro que não era nada não. Bobagem.

Amanhã, já teria esquecido tudo.

Sem enlouquecer

A idéia é mesmo a do liquidificador. Você pega tudo o que tem à mão e joga lá dentro. Depois bate. A pasta que sai é aquilo que nas salas de aula e nas rodinhas de pessoas de sucesso, muitas delas cults, costumamos chamar pós-modernidade. Uma merda. Uma verdadeira merda. O mundo continua pegando fogo. E cada um de nós continua apagando o incêndio pessoal.

Cada vez mais vou aderindo a essa pós-modernidade pastosa. Uma onda de pessoinhas que cada vez mais acham lindo a transgressão mas que não transgridem nada. De gente que não consegue se colocar no lugar do outro. De sujeitos e sujeitas cada vez mais solitários, dominados por uma tela de computador.

Será que estamos mesmo perdendo o calor? Será que estamos procurando mesmo nos adaptar ao mundo congelado que estará um dia lá fora, nos esperando? Não consigo saber. O único que sei é que o que estou fazendo agora é uma adesão completa a essa pós-modernidade líquida e pastosa. E o único que talvez possa é gritar vivas.

Viva a minha imaturidade. Viva os filhos que não sabemos pra onde vão. Viva as menininhas supostamente inteligentes. Viva os jardins que não dão flores. Viva os livros queimados. Viva essa tela fria aqui na minha frente.

Afinal, é ela que nos tem aquecido.