segunda-feira, setembro 15, 2008

Beleza e denúncia em estética teatral

"Quando você não está no céu", montagem teatral de Carlos Gradim do clarividente texto de Edmundo Novaes Gomes, é espetáculo intrigante que pôde ser visto no Teatro Odeon (rua Tenente Brito Melo, 254, no Barro Preto). A produção encontra-se relacionada ao Teatro do Absurdo, cujo auge se deu nos anos 1960, e com as obras existencialistas "En attendent Godot", ("Esperando Godot"), de Samuel Beckett, e "Huis Clos", ("Entre Quatro Paredes"), de Jean Paul Sartre. Há, ainda, referências verbo-estilísticas ao "Grande Sertão" de Rosa, nesta peça que é uma denúncia contra a maldade humana.

"Deixe a esperança de fora!" é uma das frases que representam o desalento das personagens fadadas a vivenciar eternamente os seus desânimos interiores, ao contrário do que ocorre em Guimarães Rosa, que redime a raça por meio da re-criação e do humour. As figuras dramáticas de Novaes estão ora imobilizadas em uma cadeira de rodas, ora carregam no colo ou comem um natimorto, ora são um mentor prazerosamente debochado (Geraldo Peninha, um dos destaques da encenação), ou um triste adolescente (revela-se Isaque Ribeiro, nevrálgico e sensível) que, antes de saltar ao abismo, bate na cabeça e grita "o inferno é aqui, ó!". Nesta frase, verifica-se um contraponto de Novaes à afirmação de Sartre que, há décadas, terminou o texto de "Entre quatro paredes", também sobre o encontro de seres no inferno, com a famosa afirmação: "L'enfer sont les autres!" (o inferno são os outros).

Na descida ao Inferno, um mentor sertanejo (Peninha) facilita-nos a compreensão da trama em flash-back, ao narrar os fatos a um médico (Marcelo do Vale) que, ao desejar e profanar mentalmente o corpo da mulher morta, comete o pecado da Cobiça. Desejosos de "passear" pelo andar subterrâneo da alma, os dois curiosos descem através de aberturas no cenário e vão ver o que ocorre lá no fundo...

Com sua "Quando você não está no céu", Edmundo dá continuidade ao posicionamento negativista presente em seu premiado livro "Falar", obra realista em linguagem coloquial e sem limitação vocabular alguma no que se refere a obscenidades, o que para muitos é um atrativo. Convivendo com a liberdade criativa, ambas as obras são possuidoras de infiltrações poéticas que funcionam como "releases" afetivos (relaxamentos) à secura e à solidão da fala solta em tempestade cerebral. De novo, o autor mineiro reitera sua crença na incapacidade humana de construir, preferindo o ser destruir-se e também ao Outro. Tanto o livro "Falar" quanto a peça "Quando você..." parecem afirmar que não há escapatória para a perdição. A morte da pureza é, assim, inevitável. O desprezo pela redenção através da espiritualidade e do altruísmo se impregna de cinismo e de audaciosas imagens que chocam, sendo um bom exemplo aqui a passagem de pedofilia na praia de "Falar", simbolicamente repetida na cena teatral em que, descendo do andar superior do cenário para o de baixo (ou da Terra explícita para o inferno da consciência), o frágil cadáver de uma criancinha desce numa corda e vai diretamente à goela do capeta assentado, que o devora aos nacos. A criatura demoníaca, aqui, é um horrível ser andrógino (Domingos Gonzaga) de seios agigantados.

Os "locos horrendus" característicos do barroco contrastam com a sutil direção musical de Morris Picciotto e com a clean projeção de luz baixa promovida à perfeição por Telma Fernandes. Desde a primeira cena, faz-se notar a competência técnica da montagem, destacando-se a cenografia e do figurino de André Cortez. Tudo converge ao cenário esquematizado em dois níveis, estrados de ferro fixos e vazados sobre os quais trafegam as mentes sucumbidas aos Pecados Capitais, em especial a Inveja, a Luxúria e a Gula. Portinholas nas laterais do palco deixam sair e entrar a Traição, o Engano e a Perfídia, mulheres sem cabelo e zumbis sem alma, espíritos desprovidos de si mesmos, monstros em total irreligião. Nossa Senhora e a Santa dos Olhos (magnífica, em plena nudez, está Renata Cabral) despem-se de seus delicados mantos de brilho, humanizando-se ao lado da mulher careca em cadeira de rodas (Cynthia Paulino). Impossibilitada da cintura para baixo, acompanhada por um violão, a aleijada canta "Dio come ti amo", balada de filme p&b que acalantou massas românticas há quase 50 anos. A cena extrapola e amplia o espetáculo, para além do texto triste do corajoso escritor Edmundo de Novaes. Nisto atua a direção e toda a Odeon CIA Teatral, com preparação corporal de Fernanda Vianna ressaltada pela iluminação que também incide sobre bem escolhidos objetos cênicos (Fernanda Ocanto).

Há de se mencionar, também, o efeito especial do filete de pano vermelho e fosforescente, que em dado instante cai de cima até o solo, representando, de modo majestoso, um derramamento de sangue na escuridão. No fechamento, surge a grande Wilma Henriques, em indumentária de prostíbulo e firmes seios à mostra. Sua personagem repete, agora na idade madura, a jovem prostituta (Renata Cabral), mãe do natimorto que, enterrado em seus braços, abrira a encenação nas profundezas da morada escura. Um movimento de velas, chamas e sons tirados de pratos de cerâmica remontam às paragens orientais do início da trama que podia acontecer lá longe ou aqui, no sertão brasileiro, ou ainda dentro do egocêntrico coração amargurado.

O espetáculo teve o apoio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura e da TV Alterosa.

Texto de Rogério Zola Santiago, Mestre em Crítica pela Indiana University, USA.

sábado, setembro 06, 2008

E o jornalista, o que é? Digam agora e sem desculpas, sem avessos, sem culpas, sem pudores, sem ausências, sem pendências: o jornalista, o que é?

O jornalista é este meu vizinho, essa vizinha, que não mora no mesmo lugar que eu. Sim, talvez seja este meu vizinho que levantou cedo, colocou seu terno bacanudo e foi trabalhar numa grande empresa e ganhar um salário enorme e eu, quando vejo o jornalista bacanudo, fico pensando que eu podia ter sido jornalista, ter estudado muito-muito jornalismo e hoje não me preocupar com o ônibus cheio que vou pegar daqui a pouco e trabalhar sem pensar em palavrões como a inflação, a crise da macro-economia, as palavras bonitas e cheias, porque para mim a barriga é aquela que anda vazia, o boneco é aquele feito do Judas que a gente queima na hora que tem que queimar e o furo é esse oquinho que uma bala de 38 fez na testa daquele menino que os prepostos do glorioso exército brasileiro entregaram para uns traficantes lá no alto, lá no alto, mas lá no alto mais alto mesmo do morro, do céu.

Mas e o jornalista, o que é? Digam agora e com coragem, com meios e fins, com vontades, com descaro, indecentemente dizendo o que é, o jornalista, o que é?

O jornalista é esse sujeito ou essa sujeita que acordou cedo e também foi trabalhar numa grande empresa, só para ganhar o salário de poder pagar a universidade que ele está fazendo noturnamente e contra muitas expectativas. Então, esse não é ainda o jornalista, mas é o futuro jornalista que sai para trabalhar em companhias telefônicas, em enormes, enormes e mais enormes ainda instituições financeiras, em laboratórios de remédios, sempre ou quase sempre como estagiário, ganhando uma grana que é pra pagar a universidade e uma cervejinha depois da última aula e um bombonzinho que a colega vende em sala pra ajudar nas despesas, pra ajudar a mãe, o pai, os irmãos, só pra um dia todos eles poderem colocar uma roupa bonita, uma roupa a mais bacanuda que existe, mandada especialmente fazer para a ocasião, e irem bater palmas, assoviar, gritar, berrar, trazendo faixas e soltando confetes, soprando apitos estridentes e ficando muito felizes, mas muito felizes mesmo porque aquele sujeito ou aquela sujeita que antes acordava cedo e ia trabalhar de estagiário, de simples estagiário num banco, numa companhia telefônica ou num laboratório de remédios, agora, esse sujeito não vai ser mais um reles estagiário e está aí, saiu hoje cedinho com o currículo debaixo do braço e até o fim do dia, até o fim da semana, até o fim do mês, até o fim do ano, até o fim da vida, se Deus quiser, esse sujeito, essa sujeita, eu, tu, ele, ela, nós, vós, elas, eles arrumaremos um emprego que é pras coisas continuarem globalizadamente certas, vivendo o paradoxo intransponível de mudarem para continuar sempre, sempre, sempre no mesmo lugar.

Então, digam agora, com a sinceridade possível, com a dor agüentável, com o choro legítimo, com a fala embargada, a emoção sem limites, o medo, o medo, o medo, digam: o jornalista, o que é?

É esse arcanjo que, há três dias, há não sei quantos dias, saiu apaixonado investigando bandidos, mas esses bandidos descobriram que ele estava investigando, e, então, esses malucos pegaram esse arcanjo e torturaram, espancaram, bateram muito, cortaram os pés, as mãos, botaram fogo e deixaram queimar. E o corpo desse arcanjo queimou tanto e as cinzas e as fumaças voaram tão alto que muitos outros sujeitos e sujeitas quiseram também ser arcanjos e arcanjas só para não deixar de lembrar nunca de dois Vladimires: um jornalista, jornalista, sempre jornalista, que também morreu porque acreditava; e outro poeta, poeta, ininterruptamente poeta, que dizia querer “brilhar para sempre, brilhar como um farol, brilhar com brilho eterno, gente é pra brilhar, que tudo o mais vá pro inferno, este é o meu slogan e o do sol”.

Então, digam. Pelo amor de Deus, digam logo: o jornalista, o que é? Pelo amor dos slogans, pelo amor dos sóis, pelo amor dos brilhos eternos, das girafas e dos micos-leões-dourados que estão acabando, pelo amor das ladeiras de Ouro Preto, pelo amor dos anjos e dos arcanjos, dos rouxinóis que cantam futuros repletos de furacões, pelo que está escrito em Jó e Eclesiastes, pelo que está dito em Rubem e Nélson também, pelo perseguido e pelo perseguidor, pelo palhaço adormecido perto das estrelas com um cachorrinho lambendo seu rosto, pelos que morrem e pelos que vivem, pelos que têm e pelos que não têm razão. Digam, digam logo: o jornalista, o que é?

Ah, sim. Talvez o jornalista seja esse sujeito que escreve, que escreve porque tem que escrever, porque precisa escrever, que escreve para ser ele próprio escrito, que sacrifica, que grita, que berra, que fala baixinho para o outro não acordar, que expulsa os comerciantes do templo, que acolhe os amigos com beijos na testa, que perdoa os inimigos quando eles merecem, que chora, que chora, que chora, que ri, que tem medo, que vai adiante, que vem aquém, que vai além, que importa, que respira, que transpira, que suspira, que assume, que se levanta, que se levanta agora neste mesmo momento e diz: -Sim, sou eu esse sujeito, sou eu esse homem, essa mulher, que está aqui agora, que está aqui agora com o coração suspenso, com os corações ao alto, sou eu esse sujeito que está aqui agora para assumir o que tiver que ser assumido, sou eu esse pobre, sou eu esse negro, sou eu esse gay, sou eu esse gordo, sou eu esse magro, sou eu essa diferença, sou eu essa oposição, sou eu esse feio, sou eu esse guapo, sou eu esse desajeitado, sou eu esse impaciente, sou esse inconformado, sou eu essa diversidade, sou eu esse mendigo, sou eu esse povo, sou eu essa dor, sou eu esse medo, sou eu esse ímpeto, sou eu essa vontade, sou eu essa esperança, sou eu essa verdade, sou eu essa busca, sou eu esse amor.

Sim, sou eu esta Alessandra, sou eu este Alisson, sou eu esta Ana Paula, sou eu este André, sou eu esta Antisa, sou eu esta Ariane, este Bruno, somos nós estas Camilas, sou eu este Cássio, esta Cláudia, esta Cristiane, sou eu este Edmundo, esta Emile, esta Emmanuelle, esta Fabiana, esta Fabrícia, esta Fernanda, esta Flávia, sou eu este Hudson, esta Jordânia, esta Laura, sou eu este Lázaro, este Leandro, esta Lidiane, somos nós estas Lívias, sou eu este Lucas, esta Luciene, esta Ludmila, este Marcos, esta Maria Letícia, esta Nilde, esta Patrícia, este Peterson, esta Poliana, esta Priscila, esta Rita, este Robson, este Samuel, esta Sandreane, esta Sheila, este Vinicius. Sim, sou eu esse povo, sou eu essa dor, sou eu esse medo, sou eu esse ímpeto, sou eu essa vontade, sou eu essa esperança, sou eu essa verdade, sou eu essa busca, sou eu esse amor.

Então, respondam, respondam logo e sem perder um único segundinho sequer: o jornalista, o que é?
  • Discurso pronunciado na formutura da turma de Jornalismo, turno da noite, do UNI-BH, em setembro de 2008.