Ainda ontem, fui surpreendido pela matéria que o querido Fabrício Marques, editor do Impressão, pediu que fizessem sobre mim para este que é o jornal laboratório do Curso de Jornalismo do UNI-BH, onde, é preciso olhar minha carteira de trabalho, desde março de 1990, dou aulas.
Fiz o esforço porque, em uma página inteira do periódico que mistura texto interpretativo, perfil e crítica, deparei com a informação de que estou nessa instituição há 23 anos. Tal fato me pareceu improvável e, por isso, fui fazer aquilo que os jornalistas devemos sempre fazer: checar. Então, descobri a confusão feita pela repórter: ela tomou, talvez, a idade em que entrei para esse que é certamente o lugar que mais felicidades me deu no trabalho como o tempo em que me encontro na casa.
Mas, ora bolas, também não pode ser isso. Em março de 1990, eu tinha 24 anos, e não 23. Maçada! Deixa pra lá. Afinal, não é sobre isso que estou escrevendo agora. Mas também não deixa de ser. O que quero falar são dos erros que fui encontrando pela matéria. Além do numerinho, outros detalhezinhos me incomodaram: o primeiro, o título de minha dissertação de mestrado em literatura, que na verdade é “Édipo – Acasos de uma leitura heterodoxa”; o outro, o fato da repórter colocar que me casei oito vezes.
Sim, foi isso, ao lado do número 23, o que mais me incomodou na matéria. Devo ter dito: -Ah! Já me casei umas oito vezes! E isso foi o bastante para a garota levar ao pé da letra uma ironia que me é natural.
Não. Não me casei oito vezes. Não sou nenhum herói grego para suportar tantas peripécias. Mas as vezes que me casei me serviram, e me servem, para mudar não as quantidades de meus mundos, mas a qualidade deles. Às vezes, para melhor; outras, para pior.
Mas também não é sobre isto que quero falar. Quero dizer sobre meu trabalho como revisor dos textos dos alunos de jornalismo. Depois de tanto tempo na área do copy-desk, tenho descoberto que o único que pode fazer com que uma pessoa faça seu trabalho de modo minimamente correto, sem trocar uns números por outros e sem separar sujeitos de verbos com vírgulas, é o próprio ser que escreve.
Só ele, em sua busca desesperada pelo acerto, pode produzir um texto correto. E escrevo aqui correto não no sentido do certo, do exato, mas no sentido de que o que importa é que sejamos verdadeiros com nosso íntimo, com aquilo que realmente somos. Sim. Acredito que o texto é nada mais do que o espelho daquilo que levamos dentro, com todas as belezas, mazelas, sordidezes, vaidades, porcarias, encantos, seduções. Por isso, quando escrevemos, nos escrevemos.
É por isso que não adiantam professores, gramáticas e manuais para um ser que parece já nascer com a pesada e intangível vocação de macular a virgindade do papel com aquilo que ele próprio e o próprio mundo levam em seu mais íntimo íntimo. E isso, ao contrário do que soem pensar os desavisados, não é nada glamouroso. É terrível e trepidante.
Assim que fico feliz quando vejo uma página inteira do Impressão falando de mim. Vaidade pura, é claro. Mas a felicidade também vem pelo prazer de soborear como tudo aquilo que falei até agora pode ser resumido no texto de Carlos Alberto Rocha, estudante de jornalismo com quem tive o prazer de conviver no primeiro semestre de 2006. Em poucas palavras redigidas numa crítica de meu livro Falar, Carlos Alberto parece ter descoberto o que Buñuel sempre soube: que nosso filme é sempre o mesmo. Não importa se o cenário é uma página de romance, um palco de teatro ou uma sala de aula. Para quem sabe que criar é a arte de se criar. A vida é aquilo que realmente interessa. E a morte também.
Fiquem, então, com o texto de Carlos Alberto Rocha.
Convenções Coletivas
Carlos Alberto Rocha
Convenção coletiva foi a primeira expressão que me ocorreu quando comecei a ler Falar - Um Romance de Amor e Ódio, de Edmundo Novaes (Editora Nova Prova, 2003, 199 páginas). Algo me prenunciava um tratado sobre as convenções sociais que todos nós engolimos pelo bem da tradição, da família e, porque não, da propriedade. Nada a ver com o texto ou com o conteúdo, tudo a ver com os velhos princípios das hipocrisias humanas, originadas em tempos imemoriais.
Fiz o esforço porque, em uma página inteira do periódico que mistura texto interpretativo, perfil e crítica, deparei com a informação de que estou nessa instituição há 23 anos. Tal fato me pareceu improvável e, por isso, fui fazer aquilo que os jornalistas devemos sempre fazer: checar. Então, descobri a confusão feita pela repórter: ela tomou, talvez, a idade em que entrei para esse que é certamente o lugar que mais felicidades me deu no trabalho como o tempo em que me encontro na casa.
Mas, ora bolas, também não pode ser isso. Em março de 1990, eu tinha 24 anos, e não 23. Maçada! Deixa pra lá. Afinal, não é sobre isso que estou escrevendo agora. Mas também não deixa de ser. O que quero falar são dos erros que fui encontrando pela matéria. Além do numerinho, outros detalhezinhos me incomodaram: o primeiro, o título de minha dissertação de mestrado em literatura, que na verdade é “Édipo – Acasos de uma leitura heterodoxa”; o outro, o fato da repórter colocar que me casei oito vezes.
Sim, foi isso, ao lado do número 23, o que mais me incomodou na matéria. Devo ter dito: -Ah! Já me casei umas oito vezes! E isso foi o bastante para a garota levar ao pé da letra uma ironia que me é natural.
Não. Não me casei oito vezes. Não sou nenhum herói grego para suportar tantas peripécias. Mas as vezes que me casei me serviram, e me servem, para mudar não as quantidades de meus mundos, mas a qualidade deles. Às vezes, para melhor; outras, para pior.
Mas também não é sobre isto que quero falar. Quero dizer sobre meu trabalho como revisor dos textos dos alunos de jornalismo. Depois de tanto tempo na área do copy-desk, tenho descoberto que o único que pode fazer com que uma pessoa faça seu trabalho de modo minimamente correto, sem trocar uns números por outros e sem separar sujeitos de verbos com vírgulas, é o próprio ser que escreve.
Só ele, em sua busca desesperada pelo acerto, pode produzir um texto correto. E escrevo aqui correto não no sentido do certo, do exato, mas no sentido de que o que importa é que sejamos verdadeiros com nosso íntimo, com aquilo que realmente somos. Sim. Acredito que o texto é nada mais do que o espelho daquilo que levamos dentro, com todas as belezas, mazelas, sordidezes, vaidades, porcarias, encantos, seduções. Por isso, quando escrevemos, nos escrevemos.
É por isso que não adiantam professores, gramáticas e manuais para um ser que parece já nascer com a pesada e intangível vocação de macular a virgindade do papel com aquilo que ele próprio e o próprio mundo levam em seu mais íntimo íntimo. E isso, ao contrário do que soem pensar os desavisados, não é nada glamouroso. É terrível e trepidante.
Assim que fico feliz quando vejo uma página inteira do Impressão falando de mim. Vaidade pura, é claro. Mas a felicidade também vem pelo prazer de soborear como tudo aquilo que falei até agora pode ser resumido no texto de Carlos Alberto Rocha, estudante de jornalismo com quem tive o prazer de conviver no primeiro semestre de 2006. Em poucas palavras redigidas numa crítica de meu livro Falar, Carlos Alberto parece ter descoberto o que Buñuel sempre soube: que nosso filme é sempre o mesmo. Não importa se o cenário é uma página de romance, um palco de teatro ou uma sala de aula. Para quem sabe que criar é a arte de se criar. A vida é aquilo que realmente interessa. E a morte também.
Fiquem, então, com o texto de Carlos Alberto Rocha.
Convenções Coletivas
Carlos Alberto Rocha
Convenção coletiva foi a primeira expressão que me ocorreu quando comecei a ler Falar - Um Romance de Amor e Ódio, de Edmundo Novaes (Editora Nova Prova, 2003, 199 páginas). Algo me prenunciava um tratado sobre as convenções sociais que todos nós engolimos pelo bem da tradição, da família e, porque não, da propriedade. Nada a ver com o texto ou com o conteúdo, tudo a ver com os velhos princípios das hipocrisias humanas, originadas em tempos imemoriais.
Falar é o desabafo de Ana, uma figura inteligente, frágil e nada sincera, que se deixa ferir pela vida até o ponto da ruptura. É somente isto, mas que nos surge de forma contundente, como uma limalha no olho. Enquanto assistimos ao aço sendo esmerilhado, soltando fulgurantes limalhas incandescentes, somos felizes. Até que uma delas nos fira a vista.
Falar nos fere. Não é um romance agradável, dos que lemos com um sorriso idiota nos lábios. Por tanta sinceridade e compromisso com o desabafo de uma alma que se viu, como todos nós, submissa às convenções da vida coletiva, nos ofende. Sobre o tema recorrente da contraposição amor e ódio, que se desenvolve em lances de violência, Novaes construiu uma trama que conduz o leitor à crescente surpresa diante de fatos obtusos. Uma leitura indigesta para os estômagos sensíveis, mas inacreditavelmente necessária.
O autor de Falar é daqueles sujeitos de carreira plural. Jornalista, publicitário, professor universitário, escritor e dramaturgo, com incursões pelo cinema. Contudo, a despeito das múltiplas atuações, é possível notar semelhanças entre algumas elas. São as mesmas intempéries que surgem no livro em forma de violência as que fazem chover contundentes lições em sala de aula. Em 2003, Falar recebeu o Prêmio Casa de Cultura Mário Quintana, que rendeu a sua primeira e única edição, já esgotada. Como o livro não tem vocação para best seller, não há notícia sobre uma reedição. Mas a obra é como um daqueles pratos muito temperados, de difícil digestão, que estamos sempre dispostos a repetir e a divulgar.
-Jornal Impressão, junho de 2006