Hoje, quando se olha para trás, e até mesmo para a frente, é quase impossível não enxergar nossa herança e nosso futuro gregos. Assim como é difícil não percebermos a condição trágica do humano. O que Édipo faz, e o vem fazendo desde que foi inventado, é colocar esta tragicidade a dois palmos de nossa cara para, ainda assim, não conseguirmos compreendê-la em toda sua essência. Também nós, por julgarmos muito saber, mal sabemos.
Tratar essa herança, este espólio helênico, de modo crítico tem sido o desafio de quem, com maior ou menor intensidade, pensa, com alguma esperança, este ser humano marcado pela dor trágica. Nesse sentido, a idéia que aqui se tentou propor – ou seja: tentar ver em maiores detalhes como foi pintada a ânfora de San Gimignano – vem como reflexo mesmo dessa disposição de enxergar o mundo com um olhar mais terno.
Com a mais absoluta sinceridade, a grande pergunta que me assaltou no processo de escritura tanto desta dissertação como da situação dramática que lhe faz apêndice, é desconcertante. Para quê? Qual o sentido prático mais razoável, num mundo em que torres são derrubadas por aviões cheios de gente e crianças são atingidas por mísseis a todo o tempo, qual o sentido em tentar afirmar que existe algo por trás do vaso de cerâmica?
Ainda não sei. Sei apenas que este projeto também ainda não acabou. Ao me dedicar a pensar o tema, pude perceber quantas coisas mais foram urdidas sobre o assunto. Édipos reinventados por Corneille, Voltaire, Höderlin, Ducis, Platen, Jean Cocteau, Stravinski, Gide, Bernardo Santareno, Robbe-Grillet, e nenhum deles analisado mesmo que superficialmente por este trabalho. Aqui creio estar, sem dúvida, matéria para várias vidas em busca do melhor entendimento sobre o barro e os pigmentos que deram forma e aparência ao sujeito que se ampara no bastão, à esfinge que está bem a sua frente, à mulher que o espera sem nunca ter deixado que ele se fosse.
Assim, o que pude perceber é que – mesmo que o estudo que fiz possa ser considerado completamente inútil, e que a tentativa de escrever um drama sobre assunto tão sério seja tida como uma pretensão imperdoável de minha parte – mesmo que tudo isso seja verdade, uma coisa é certa: Édipo e Jocasta somos cada um de nós.
Tal conclusão pode parecer óbvia e itinerante, mas não posso deixar de senti-la como talvez a única verdade percebida neste meu esforço que tramou reunir criação dramática e hermenêutica. Sim. A sensação é de que aquela criança que foi entregue ao carrasco somos nós. E de que a mulher que a entrega para que morra no alto de um morro também somos nós.
E é por isso que andamos todos e cada um de nós por aí a assassinar pais, a desvendar charadas, a dormir com filhos, a derrubar edifícios, a sermos atingidos por mísseis, a nos enforcarmos, a cultivar nossa própria cegueira. O fato é que, mesmo sendo, não damos conta de saber o que significa sermos Jocastas e Édipos. E também não sabemos a partir de quais significantes a ânfora de San Gimignano pode ser melhor apreciada. Há realmente uma linguagem masculina e apolínea que nos faz enxergar o mundo por determinado prisma? Em contraposição a esta ordem, existe uma outra que lhe subverte e, intrometendo-se em seus códigos, é capaz de mudar-lhe o sentido?
Não me recordo onde li que Ulisses, o herói grego, arava a areia de uma praia deserta. No entanto, esta imagem ficou em minha cabeça desde então, como se fosse o contraponto do Édipo que é entregue ao verdugo e da Jocasta que, depois de entregá-lo, põe-se a esperar. Por isso, ainda me pego consultando verbetes de dicionários e a fazer pesquisas na internet. Talvez, num arroubo dionisíaco que, por que não?, só Freud pode explicar, tenha inventado para Ulisses esta cena.
Mas, ainda hoje, tal idéia – a de um homem arando algo que não faz sentido arar – não sai de meus pensamentos. O que me parece é que, de uma ou outra forma, o viril e astuto herói de Ítaca se redime de todas as guerras e mortes que pesam em suas costas ao cultivar a areia da praia. Posso até mesmo ver a figura consumida de um anĕr velho e cansado das batalhas de Tróia, ou de suas odisséias pela Trácia, enxugando o suor que lhe goteja do rosto, tendo o Egeu como fundo. O lugar poderia ser a ilha de Éolo, e nosso herói parou apenas um instante, a fim de recuperar suas forças para voltar a correr a charrua pela parte da praia que ainda falta ser sulcada.
O que imagino é que, com esse trabalho trepidantemente estéril, Ulisses também tenha procurado se redimir dos longos anos em que deixou sua Penélope a tecer e destecer a mortalha de Laerte. A vida entre as gentes, sobretudo hoje, em que os fios da harmonia parecem completamente perdidos da meada, revela-nos sempre algo desse Ulisses que lavra o infértil e dessa Penélope que espera fiando e desfiando. Desse Édipo que mata o pai para depois tomar seu lugar e dessa Jocasta que manda matar para, em seguida, desejar a volta.
Explico. Enxergar o outro, creio, é avistar-nos a nós mesmos. Esperamos do outro não aquilo que ele é, mas o que queremos que ele seja ou o que nós próprios gostaríamos de ser. Por isso, as odisséias nos relacionamentos. Por isso, o tecido que deve ser desfeito a cada noite. Por isso, talvez, tentar ver Édipos e Jocastas a partir de outras miradas.
Acredito também que é para manter vivas suas esperanças de encontrar seu Ulisses que Penélope desfaz a mortalha que fiou. É para redescobrir sua Penélope que Ulisses lavra um solo que jamais poderá dar frutos. Então, e isso parece terrível, o que avistamos no outro é nossa própria esterilidade e, com medo dela, enlouquecemos na espera e no áspero.
No fundo, em cada circunstância de encontro nesse nosso mundo grego e precário, também rogamos descobrir Penélopes e Ulisses, Jocastas e Édipos. Mulheres capazes de arar o inútil e homens capazes de tecer o que no dia seguinte deverá ser refeito. Naquilo que buscamos, acredito que o que sempre irá durar é mesmo a chama essencial. Aquela chama que arde e que não vemos, como lembra Camões. Assim é o Ulisses que também espera, talvez para se redimir de quem por ele arou o impróprio. Assim, a Penélope que venceu guerras e moeu o áspero, talvez para se perdoar de quem por ela passou as noites desfiando. Assim, a espera. Assim, a criação literária. Assim, a recriação científica. Arar, fiar, desfiar e pensar podem ser mesmo aquilo para o qual não encontraremos nunca explicação. E para o qual talvez não estejamos mesmo preparados. Assim, Jocastas. Assim, Édipos.
Assim, nós.
Tratar essa herança, este espólio helênico, de modo crítico tem sido o desafio de quem, com maior ou menor intensidade, pensa, com alguma esperança, este ser humano marcado pela dor trágica. Nesse sentido, a idéia que aqui se tentou propor – ou seja: tentar ver em maiores detalhes como foi pintada a ânfora de San Gimignano – vem como reflexo mesmo dessa disposição de enxergar o mundo com um olhar mais terno.
Com a mais absoluta sinceridade, a grande pergunta que me assaltou no processo de escritura tanto desta dissertação como da situação dramática que lhe faz apêndice, é desconcertante. Para quê? Qual o sentido prático mais razoável, num mundo em que torres são derrubadas por aviões cheios de gente e crianças são atingidas por mísseis a todo o tempo, qual o sentido em tentar afirmar que existe algo por trás do vaso de cerâmica?
Ainda não sei. Sei apenas que este projeto também ainda não acabou. Ao me dedicar a pensar o tema, pude perceber quantas coisas mais foram urdidas sobre o assunto. Édipos reinventados por Corneille, Voltaire, Höderlin, Ducis, Platen, Jean Cocteau, Stravinski, Gide, Bernardo Santareno, Robbe-Grillet, e nenhum deles analisado mesmo que superficialmente por este trabalho. Aqui creio estar, sem dúvida, matéria para várias vidas em busca do melhor entendimento sobre o barro e os pigmentos que deram forma e aparência ao sujeito que se ampara no bastão, à esfinge que está bem a sua frente, à mulher que o espera sem nunca ter deixado que ele se fosse.
Assim, o que pude perceber é que – mesmo que o estudo que fiz possa ser considerado completamente inútil, e que a tentativa de escrever um drama sobre assunto tão sério seja tida como uma pretensão imperdoável de minha parte – mesmo que tudo isso seja verdade, uma coisa é certa: Édipo e Jocasta somos cada um de nós.
Tal conclusão pode parecer óbvia e itinerante, mas não posso deixar de senti-la como talvez a única verdade percebida neste meu esforço que tramou reunir criação dramática e hermenêutica. Sim. A sensação é de que aquela criança que foi entregue ao carrasco somos nós. E de que a mulher que a entrega para que morra no alto de um morro também somos nós.
E é por isso que andamos todos e cada um de nós por aí a assassinar pais, a desvendar charadas, a dormir com filhos, a derrubar edifícios, a sermos atingidos por mísseis, a nos enforcarmos, a cultivar nossa própria cegueira. O fato é que, mesmo sendo, não damos conta de saber o que significa sermos Jocastas e Édipos. E também não sabemos a partir de quais significantes a ânfora de San Gimignano pode ser melhor apreciada. Há realmente uma linguagem masculina e apolínea que nos faz enxergar o mundo por determinado prisma? Em contraposição a esta ordem, existe uma outra que lhe subverte e, intrometendo-se em seus códigos, é capaz de mudar-lhe o sentido?
Não me recordo onde li que Ulisses, o herói grego, arava a areia de uma praia deserta. No entanto, esta imagem ficou em minha cabeça desde então, como se fosse o contraponto do Édipo que é entregue ao verdugo e da Jocasta que, depois de entregá-lo, põe-se a esperar. Por isso, ainda me pego consultando verbetes de dicionários e a fazer pesquisas na internet. Talvez, num arroubo dionisíaco que, por que não?, só Freud pode explicar, tenha inventado para Ulisses esta cena.
Mas, ainda hoje, tal idéia – a de um homem arando algo que não faz sentido arar – não sai de meus pensamentos. O que me parece é que, de uma ou outra forma, o viril e astuto herói de Ítaca se redime de todas as guerras e mortes que pesam em suas costas ao cultivar a areia da praia. Posso até mesmo ver a figura consumida de um anĕr velho e cansado das batalhas de Tróia, ou de suas odisséias pela Trácia, enxugando o suor que lhe goteja do rosto, tendo o Egeu como fundo. O lugar poderia ser a ilha de Éolo, e nosso herói parou apenas um instante, a fim de recuperar suas forças para voltar a correr a charrua pela parte da praia que ainda falta ser sulcada.
O que imagino é que, com esse trabalho trepidantemente estéril, Ulisses também tenha procurado se redimir dos longos anos em que deixou sua Penélope a tecer e destecer a mortalha de Laerte. A vida entre as gentes, sobretudo hoje, em que os fios da harmonia parecem completamente perdidos da meada, revela-nos sempre algo desse Ulisses que lavra o infértil e dessa Penélope que espera fiando e desfiando. Desse Édipo que mata o pai para depois tomar seu lugar e dessa Jocasta que manda matar para, em seguida, desejar a volta.
Explico. Enxergar o outro, creio, é avistar-nos a nós mesmos. Esperamos do outro não aquilo que ele é, mas o que queremos que ele seja ou o que nós próprios gostaríamos de ser. Por isso, as odisséias nos relacionamentos. Por isso, o tecido que deve ser desfeito a cada noite. Por isso, talvez, tentar ver Édipos e Jocastas a partir de outras miradas.
Acredito também que é para manter vivas suas esperanças de encontrar seu Ulisses que Penélope desfaz a mortalha que fiou. É para redescobrir sua Penélope que Ulisses lavra um solo que jamais poderá dar frutos. Então, e isso parece terrível, o que avistamos no outro é nossa própria esterilidade e, com medo dela, enlouquecemos na espera e no áspero.
No fundo, em cada circunstância de encontro nesse nosso mundo grego e precário, também rogamos descobrir Penélopes e Ulisses, Jocastas e Édipos. Mulheres capazes de arar o inútil e homens capazes de tecer o que no dia seguinte deverá ser refeito. Naquilo que buscamos, acredito que o que sempre irá durar é mesmo a chama essencial. Aquela chama que arde e que não vemos, como lembra Camões. Assim é o Ulisses que também espera, talvez para se redimir de quem por ele arou o impróprio. Assim, a Penélope que venceu guerras e moeu o áspero, talvez para se perdoar de quem por ela passou as noites desfiando. Assim, a espera. Assim, a criação literária. Assim, a recriação científica. Arar, fiar, desfiar e pensar podem ser mesmo aquilo para o qual não encontraremos nunca explicação. E para o qual talvez não estejamos mesmo preparados. Assim, Jocastas. Assim, Édipos.
Assim, nós.
-Esta é a conclusão da minha dissertação, defendida no último 27 de outubro.