sábado, abril 29, 2006

Gênesis

No que você falou foi que eu percebi. Estávamos lá eu e ele naquele programa da TV. Eu e ele falando de como nossa parceria tinha dado certo. Pois é, você veja só, my friend. Muitas coisas acontecidas: filmes, peças de teatro, até uma convivenciazinha de um ano e meio vivendo juntinhos e sem brigar sequer uma vez. Não é uma coisa pra se comemorar? Não é mesmo pra você ir no talk show e falar, falar, falar? É sim. Não me diga que não é porque é. As coisas aí fora estão brutas, meu chapa. Desde a criação. E a tendência inevitável é piorar. Você me diz d’ont-worry-be-happy mas eu não posso desviar da minha frente a nuvem de pó que vem vindo, o redemoinho levantando tudo, os bichos do fundo do mar olhando horrorosos pra gente. Não posso. Categoricamente que não posso. Por isso é que tínhamos sim que ir naquela televisão e falar pro mundo inteiro Olha aqui, ó. Olha aqui. Aqui estão duas pessoas que nunca brigaram na vida. Já fizeram não sei quantos filmes, não sei quantos teatros, já ficaram bêbados e tropeçando e nunca brigaram. Nem na vez que eu mijei do lado da cama dele achando que estava no banheiro nós nunca não brigamos. Por isso, mundo; por isso, pessoas, nós estamos aqui para dizer pra você. Nós estamos aqui pra dizer tudo isso pra vocês. Não importa o que vocês sejam, mas nós estamos aqui pra dizer tudo isso pra vocês.

E estávamos lá dizendo tudo aquilo e comemorando mais um êxito dessa parceria formidável quando o cara da entrevista resolveu fazer uma brincadeirinha meio porca com a gente. O fato é que o tal sujeito resolveu fazer uma alusão ao fato de que ele era viado e eu ser muito macho. O sujeito resolveu e falou assim Quem é a criatura e quem é o criador? E continuou Quem aqui nasceu da costela de quem?

Ora, veja bem. Veja muito bem mesmo se eu tenho ou não que ficar emputecido. O que aquele famoso queria dar a entender? O babaca queria mesmo era sugerir que um dos dois ali era mulherzinha, uma Eva gerada de Adão, brincando assim com as sagradas escrituras e ainda mais com o livro de Gênesis, coisa que não se faz. Coisa que categoricamente não se faz. Com viadagem não se brinca. Ainda mais com a viadagem do outro. É preciso respeitar. Não é porque você tem um programa de TV que pode sair fazendo e acontecendo em cima das pessoas. Pode? Não pode. Mas até que foi muito bom ele ter falado assim essa bobagem às custas de Adão e de sua costela genética porque me deu uma idéia. Uma idéia mais filosófica que religiosa. E eu não tive outro remédio a não ser colocar tudo pra fora ali mesmo.

Na verdade, foi mesmo um desabafo. O que eu queria era mostrar pro mundo que muitas vezes as coisas não são o que parecem e que pro mundo continuar nesta debacle só mesmo por causa de uns babacas feito aquele que davam coisas a entender sem nunca entender das coisas. Por isso foi que eu disse Olha aqui, meu chapa. Você ainda está achando que o mundo foi feito de uma costela de Adão mas não foi não. E o cara: Como assim? Eu não falei nada disso. E eu: Falou sim. Você falou sim. Mas eu não vou brigar agora com essas coisas. Só vou mesmo explicar é que pra uns babacas como você o mundo foi feito mesmo é do pinto de Adão. Não é isso? Do caralho, do pau, do cacete, da jeba, do boticão. Você entendeu? Entendeu que o mundo pra uns é feito de uma coisa e pra outros de outra? Que pra você ele vem do toco e pra mim ele talvez nasça da cheirosinha, da perfeita? Você entendeu isso? Se não compreendeu, eu posso continuar explicando ou me levantar daqui e dar uns tabefes na sua cara. Você quer? Você quer que eu faça isso? Anda, me responde logo. Mas o sujeito não queria e a partir daquele momento, com a clemência e o entendimento e a aceitação do todo poderoso, daquele que julga e governa, a criação tinha sido reinaugurada. Especula especulorum.

O reino passava a ser nascido de uma jeba, ou de uma cheirosinha.

segunda-feira, abril 24, 2006

Bem longe do céu

Montagem da Odeon, inspirada em Dante e Guimarães Rosa, faz reflexões sobre doenças da alma
Walter Sebastião
Um sertanejo guiando um médico por lugares que têm qualquer coisa de infernos contemporâneos. É o espetáculo Quando você não está no céu, da Odeon Companhia Teatral, que está sendo apresentado até 28 de maio, no Sede Odeon. Inspirado na Divina comédia, do poeta italiano Dante Alighieri (1261-1321), e no romance Grande sertão: veredas, do escritor brasileiro João Guimarâes Rosa (1908-1967), quer ser uma reflexão sobre doenças, especialmente as da alma, e sobre a perda de valores na sociedade contemporânea. Em cena vão estar antigos e os novos pecados capitais: a luxúria e a gula e também a perda de compaixão e o individualismo.
“Estamos propondo uma reflexão coletiva sobre temas que afetam a todos os seres humanos”, afirma Carlos Gradim, de 38 anos, diretor da montagem. “Queremos que nossos sentimentos vibrem, reverberem e se transformem num momento de consciência necessário a ações de transformação”, acrescenta. Avisa que se trata de montagem “não realista, simbólica e até ritualística”, que dá prosseguimento à pesquisa do grupo sobre uso de espaços não-convencionais. Os atores, por sua vez, trocam “a hiperinterpretação” por exploração das sensações reais dos atores diante de certas situações.“Não temos o inferno dantesco nem o sertão de Guimarães Rosa. Contamos com mistura que leva o homem contemporâneo a não conseguir identificar nem mesmo seu lugar no mundo. Com suas identidades perdidas e partidas, tenta-se saber deste lugar, buscando o conhecimento e empreendendo ações. Mas ações e conhecimento se mostram, desde o início, sem sentido. Talvez porque, também desde o início, nossa dor trágica se resuma no fato de que nunca poderemos realmente saber quem somos e em que lugar estamos”, observa Edmundo Novaes Gomes, autor do texto do espetáculo e aquele que sugeriu levar o escritor mineiro para pesquisa, originalmente, voltada para criação de versão contemporânea do inferno da Divina comédia.
Outras tantas pesquisas, sobre o mito, como conta Carlos Gradim, trouxeram mais um motivo para a peça: a questão da crise dos heróis (“temos poucos heróis no sentido do ser humano que passa pela vida avançando por etapas e, assim, compreendendo o sentido da existência”). Como explica, tudo na peça acontece em lugar árido onde habitam seres atormentados por dúvidas e incertezas. “Na minha opinião, o ser humano teve uma evolução científica e tecnológica enorme, mas, com relação às questões da alma, regrediu. Estamos nos tornando animais”, afirma, criticando vivências autocentradas, a exacerbação da violência e o medo do outro, que passa a ser visto como adversário. “Não estamos, definitivamente, no céu”, garante. A montagem foi selecionada para a programação do Fit/BH, de 2006.
Quando você não está no céu
Espetáculo com a Odeon Companhia Teatral. Sexta e Sábado, às 21h; domingo, às 19h, na Sede Odeon (Rua Tenente Brito Melo, 254, Barro Preto, 31.3295-4264). Até 28 de maio. Ingresso: R$16 (inteira) e R$8 (meia). Classificação: 16 anos
-Portal UAI - 31 de março de 2006

quinta-feira, abril 20, 2006

Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz

Minha adaptação livre de "Of human bondage", de Somerset Maughan, acaba de ganhar o Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz. A montagem será feita pela Odeon Companhia Teatral, direção de meu irmão Carlos Gradim. É quase um sonho ver esse texto montado. A obra de Maughan me empolga muito e colocar mil páginas dentro de uma hora e meia foi um desafio. A foto acima é de Bette Davis e Leslie Howard, na adaptação para o cinema feita por John Cromwell, em 1934. Abaixo, um pequeno diálogo entre Mildred e Philip que escrevi, usando meus poderes escatológicos de enxergar, na rua, bichos que só existem no coração humano.

Philip na penumbra, num canto do palco. Mildred entra com outro vestido.

Philip
Mildred. Mildred.

Mildred
Que susto. Pensei que fosse um rato.

Philip
Um rato?

Mildred
É. Um rato. O que é que tem ser um rato? Este lugar anda infestado deles.

Philip
Nada. Mas por que um rato?

Mildred
Ora, por nada. Foi só o que me veio à cabeça. Com o senhor aí dizendo: -Mildred, Mildred. Parece mais um rato, chiando.

Philip
Não me trate assim, Mildred.

Mildred
E como pretende o senhor ser tratado? Como um bichano, um gato siamês?

Philip
Olha, Mildred, eu...

Mildred
O senhor, nada. Preciso ir embora. Tenho mais o que fazer com meu tempo...

Philip
Não é isso... Só queria dizer... Só queria dizer o que já te disse: que você não precisa me chamar de senhor. Você sabe... Eu acredito que já cheguei mesmo a lhe dizer que todas essas coisas podem ser desnecessárias entre nós.

Mildred
Desnecessário? Então, vou chamá-lo como? O senhor é ou não um verdadeiro gentleman?
Rindo.
E, aos gentlemen, é preciso tratar sempre de senhor.

Philip
Faça então como quiser, Mildred.

Mildred
Pois é isso mesmo o que farei. E vou-me embora. Como já disse, tenho mais o que fazer do que ficar parada numa rua escura conversando... conversando...
Rindo, como se tivesse tido uma boa idéia.
...com um rato.

quinta-feira, abril 13, 2006

Haiku

Não fui à estréia de "Quando você não está no céu". Mas, já há algum tempo, numa mesa de botequim, fiz um haiku (ou haikai, levando-se na devida conta o pudor brasileiro que traduziu a sonoridade japonesa de modo distinto, por motivos óbvios) de como me parecem ser as estréias de espetáculos por esse mundo afora. Segue.

esta é a estréia
um olho no palco
outro na platéia