segunda-feira, abril 06, 2009

A imagem do Cruzeiro resplandece


Uma namorada me fez um dia a seguinte ameaça: “Ou eu, ou o Cruzeiro”. E eu respondi: “Acho que você não quer saber essa resposta”.

Isso deixa tudo explicado. Não há nada mais para ser dito, mas existem muitas coisas que devem ser faladas. Afinal, o que é o amor senão falar sobre o que não precisa ser dito?

Eu tenho certeza que nasci cruzeirense. Muito, muito, muito antes da explosão do Big Bang eu já era cruzeirense. E tenho certeza que chorei de alegria quando tinha apenas alguns dias de vida e me deram meu primeiro presente: uma camisa do Maior de Minas, o meu eterno Santo Sudário, as cinco estrelas, a cruz, o Cruzeiro que eu carregaria sempre comigo. Não nas costas, mas do lado esquerdo do peito na camisa, e na pele.

Quantas vezes já não me perguntei o que era essa bobagem de torcer por onze homens correndo atrás de uma bola. Que coisa é essa de amar de um amor tão maior que a maioria dos amores existentes? Por que chorar quando perde? Por que ser a pessoa mais feliz do mundo quando ganha? Por quê? Pra quê?

Por que deixar de fazer tudo pra ver meu time jogar? Por que me matar de raiva por uns jogadores que, na maioria das vezes, não compartilham do meu sentimento?

Ora, o óbvio tem que ser ressaltado! Não jogam os jogadores, joga a camisa... O gênio não era o Alex, era a 10. O Fred, o Ronaldo, o Fábio Júnior, o Marcelo Moreno nunca fizeram um gol: a artilheira é a 9. Dida, Fábio, Gomes? Nada! Quem faz milagres é a 1. A 1, a 10, a 9, e mais aquela multidão de camisas azuis e brancas que eu sempre vi cantar na arquibancada...

Talvez eu seja cruzeirense porque meu pai quis assim, e ele porque meu avô quis. Mas não... E, sem querer desprezar a genética azul e branca da família, posso dizer que, mesmo tendo nascido no Japão, eu seria cruzeirense. Não faz sentido nenhum, eu sei. Mas é assim mesmo, o amor nunca precisou fazer sentido. Ele é uma certeza, e as dúvidas que o cercam só fazem aumentar o tamanho da convicção.

Quer ver só! Existe coisa mais bonita do que quando, com só oito anos, escutar alguém falando qualquer coisa do seu time e você lembrar o 6 a 2 do seu time em cima do Santos de Pelé? É claro que a mesa de atleticanos adultos ficou calada, sem ter o que responder.

Ou existe uma tristeza maior do que perder de goleada para o maior rival e ir ao cinema não para ver o filme, mas pra tentar esquecer pelo menos um pouquinho da tristeza daquele dia?

Existe esperança maior do que, em fevereiro de 2003, a caminho do Mineirão, amarrar no pulso uma pulseira do Senhor do Bonfim e fazer os seguintes pedidos: “eu quero que o Cruzeiro seja campeão mineiro”, “ eu quero que o Cruzeiro seja campeão da Copa do Brasil” e, por último, “eu quero que o Cruzeiro seja campeão brasileiro”? Tem coisa melhor do que sentir que contribuí para a conquista de uma Tríplice Coroa?

É, isso é amor. Alegria, tristeza, esperança, mas, principalmente, confiança. E eu confio, e eu amo, e eu sou...

Nunca foi só paixão, sempre foi muito mais que isso. Sempre foi inabalável, incorrigível e rebelde. Vai além das minhas idéias, das minhas opiniões, do meu estado de espírito. Antes de me chamar João Gabriel, eu era cruzeirense. Antes de escrever qualquer coisa, eu era cruzeirense. Antes do céu e da terra, eu era cruzeirense. Antes de acreditar em Deus, eu era cruzeirense. Antes de ser cruzeirense, pasmem!, eu era cruzeirense.

E não, eu não torço contra o vento. Nunca torci. Nunca precisei disso. Mas não porque eu torça menos, ou porque meu amor seja menor. E sim por um belo e simples motivo: eu estou sempre vestido com minha pele azul e branca. Além disso, minha fé no Cruzeiro Esporte Clube nunca fica no varal.


-João Gabriel Furbino de Novaes Gomes

quarta-feira, março 25, 2009

Homens já maduros, entrados na meia-idade, senhores acima dos 40, muitos deles casados. Estes são os clientes. Gays ou não, a discussão é longa e envolve artigos e mais artigos de antropólogos e sociólogos do mundo inteiro. Só na universidade católica em que estudei havia duas professoras com doutorado em travestis. Já contei, não contei? Não é comum nesse meio, mas fiz cinco semestres de direito na PUC. Então, como ia dizendo, uma das profs fez doutorado em Barcelona; a outra, em Paris. Sim, neném. Gastam dinheiro para tentar entender essa coisa que somos. Essa coisa sem explicação. Aquilo que conserta e desconserta. O emaranhado total, como dizem. O verdadeiro redemoinho. A alucinação. A memória.

Aqui estou eu, esta mulher perfeita, assim como me disse um professor também da universidade. Ai, gente, eu ainda era um erezinho, que depois das aulas se vestia de menina e ia pra pista: os peitinhos mínimos, a mini-saia curta e plissada, tênis e meia soquete, camisa dando nó pra mostrar o umbiguinho, meus cílios pintados, a boquinha vermelha, carnuda. E uma pintinha em cima do lábio direito. Não sei por que, mas eu amava aquela pintinha fake. Tanto é que demorei muito tempo pra deixar de usar aquela bobagem.

Mas não é isso. Eu estava mesmo era falando do olhar entupido de tesão do professor quando ele me viu entrando no banheiro, a universidade vazia. Eu estava mesmo era dizendo que ele parou na minha frente e ordenou Hoje você vai se montar lá em casa. Então, adoçando um pouquinho a mirada, colocou a mão no meu ombro e disse Vem.

E eu fui. Lá, numa casa grande e vazia que mostrava que aquele senhor todo peludo tinha acabado de se separar, ele me mostrou o quarto e o banheiro e depois saiu. Seguidinho, quando eu ainda estava em frente ao espelho, acabando de passar o lápis nos olhos e já pensando na cor do batom, vi que ele entrou e se deitou na cama. Será que estava pelado? Não. Não estava. Quando saí mocinha da suíte, encontrei direto o olhar daquele senhor de quarenta anos, já maduro, separado. Ele me puxou pela mão, sorriu, me acariciou suave e me beijou. Um beijo longo, enorme, daqueles capazes de fazer qualquer menininha se sentir mulher de verdade.

A partir daí, foi uma loucura. Mãos que se confundiam, segurando coxas, segurando carnes, segurando paus. Línguas que queriam o texto da pele, lambendo suores doces. Cheiros capazes de entontecer e quase fazer desmaiar. Ai, meu Deus. Ai, meu Deus. Ai, meu Deus. O que somos nós, antropólogos de merda? O que queremos nós, escritores mentirosos? O que estamos fazendo em corpos que não nos vestem, em cabeças que não nos acompanham, em almas que nos abandonam à primeira investida do susto inevitável? O único que sei agora é que sou esta mulher que já foi menino. E que hoje sou esse homem que é uma máquina. A mulher perfeita, me disse o tal professor, quando eu ainda era uma ninfeta quase impúbere. A mulher perfeita, com um corpo de escultura e uma rola bem grande no meio das pernas. Se você quiser meter, você mete. Se quiser dar, você dá. Você faz aquilo que quiser, porque eu estou pronta e pronto para você. Sou essa mocinha indefesa e sou esse feixe teso de músculos esperando a hora certa pra esporrar na sua cara. Saída e entrada, vôo e queda, luz e escuridão, tudo e nada. Sou aquilo que nem sei que sou. Uma máquina. Uma máquina de sexo.

Mas, no chão sem tapetes da casa do professor, encostada na parede, dentro de um porta-retratos, havia a foto de um menino de uns doze anos que devia ser o filho dele. Um menino bonito, lindo, mas dono de um sorriso triste que só agora eu posso me lembrar que o sorriso daquele garoto era mesmo um sorriso muito triste mesmo. Mas isso não vem ao caso. A verdade é que a foto continuou ali enquanto, pela primeira vez, eu me sentia mulher de verdade. O homem enfiando o seu pau enorme em mim e a foto ali. O homem me fazendo engasgar e aquela foto ali. O homem chupando meu pau e a foto ali.

A foto ali me dando um tesão que até hoje eu só posso reencontrar na minha memória. Isso. Nunca mais me senti como daquela vez. Até hoje busco, e não encontro. Até hoje peço, e não me dão. Até hoje rezo, e não me atendem. Nunca mais sofri o mesmo daquela noite inteira, sob o olhar daquele menino lindo e branco e delicado; e emaranhada nos braços e lambuzada na saliva e encharcada na porra e perdida, irremediavelmente perdida e mulher nos braços daquele homem inteiro e sem escrúpulo algum nos prazeres das mortes que nos transformam em algo que nem sabemos o que é. Só depois que ele saiu para se limpar e me deixou sozinha e suada em cima da cama bagunçada é que eu olhei diferente para aquela foto. Sim, talvez fosse isso.

Eu já não tinha mais doze anos e começava a me transformar em uma máquina que também era capaz de chorar.

terça-feira, março 10, 2009

quinta-feira, fevereiro 19, 2009

quadrilha moderna

joão add teresa que add raimundo
que add maria que add joaquim que add lili
que não add ninguém se não deixar scrap!
joão fez outro profile, teresa deletou o seu,
raimundo morreu de desastre, maria pôs [luto] no nome
joaquim suicidou-se, e lili casou-se com j. pinto fernandes
que não tinha orkut, porque achava coisa de veado!

-de João Gabriel F. de Novaes Gomes

terça-feira, janeiro 27, 2009

Se você me perguntar como tudo começou, não vou poder lhe dizer. Simplesmente não sei. Nem gosto. Além disso, o que posso perceber sentada aqui nesta poltroninha e olhando para a cara do senhor meu pai é que na minha vida as coisas acontecem como num flash-back. Tudo sem muita ordem. Uma vez, no cursinho, pediram que fizéssemos uma redação. O tema era algo como “O que você faria se tivesse uma máquina do tempo”. Lembro que escrevi que o único que iria fazer era ser eterno. Isso mesmo. Pensei na hora que, se houvesse a possibilidade de existir uma máquina desse tipo, tudo estaria mudado. Sim: acreditar que pode haver uma máquina do tempo é também acreditar que o tempo não há. Se você acha que um dia vão inventar uma coisa dessas, é porque você crê também que já inventaram, entende? Se ela vai existir no futuro, então ela já existe, porque o futuro já existe, o passado ainda existe, e o presente é isso que queremos enxergar na medida em que viajamos nela, nessa máquina do tempo que faz com que o próprio tempo não exista.

Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! É assim que me vejo agora, aqui, sentadinha nesta minha máquina do tempo que é esta poltroninha de hospital e vendo meu pai morrer, vendo esse homem respirando com dificuldades, vez ou outra tremendo as pernas de uma maneira terrível. Será que agora, por exemplo, com os seus olhos dele fechados, ele está inconsciente? Será que se lembra de que estou aqui, olhando para ele? Não. Deve estar dopado. Entupido das morfinas que lhe dão.

E, enquanto ele dorme, eu viajo em minha máquina. Ajeito um pouco meu pau no meio das pernas, pra que não faça volume na calcinha de algodão que estou usando, aproveito pra dar uma coçadinha, e sigo minha viagem. Olho para ele, arquejando barulhento em agonias e, de repente, não quero mais. Aperto então um botão da máquina e volto alguns anos. Sim. Lá estou eu, agora, em frente ao espelho de Isaura. Hoje, ela veio a mim pela manhã e disse que os dois teriam que ir ao casamento do filho de um colega dele.

Não. Não iriam me levar. Quando eu pergunto o porquê, ela se atrapalha e dá uma desculpa esfarrapada. Vamos chegar muito tarde. É um casamento com muitos amigos do seu pai. Cheio de adultos. Sem querer, minha mãe acaba dizendo a verdade. Não que o horário seja um empecilho para que eu vá à festa. O problema são os amigos dele. O senhor meu pai não quer que todos aqueles sujeitos, alguns que até estiveram com ele numa guerra de muitas mortes, vejam que o filhinho que ele teve já mais velho, depois de se casar cinquentão com aquela Isaurinha do interior, cruza as pernas como uma mocinha na hora de se sentar. Ou fala fazendo trejeitos. Muito educadinho, mas inventando movimentos involuntários com as mãos, com os braços e com a cabeça. Quando lhe perguntam alguma coisa, a voz lhe sai com uma delicadeza que não deixa dúvidas: Esse menino é uma bichinha, meu Deus! Como é que pode? Ainda não deve ter completado dez anos e parece uma menina, um veadinho que sequer dá conta de disfarçar o olhar. O ditado está mesmo certo: é de pequenino que se torce o pepino. Reparem só como ele mira os outros garotos. E como não dá conta de sair de perto das garotinhas. Na certa, o que realmente deseja é ser uma delas.

É por isso, e não por causa do horário, que não levarão o guri ao casamento do filho do amigo. Para que ele, o pai, não tenha que ficar constrangido quando lhe perguntarem É esse o rapazinho que você teve depois de velho? Para que ele não fique embaraçado quando elogiarem a beleza loira do seu guri, os olhos azuis com cílios enormes, os lábios encarnados contrastando com a pele alvíssima. Para que ele não se enrubesça ao notar como os demais meninos, quase todos eles incentivados pelos sussurros ao pé do ouvido dos adultos, isolam o pequeno efeminado das brincadeiras consideradas essencialmente masculinas. Para que, afinal, esse senhor desnorteado não tenha que mais uma vez se fazer a pergunta decisiva, ao ver o filho triste num canto, o olhar perdido nas outras crianças que se divertem correndo atrás dos balões coloridos. Uma indagação trepidante, alucinada, conclusiva, nervosa e tão verdadeira para ele, o pai, que muitos até se envergonhariam de simplesmente cogitá-la.

Por que não nasceu morto?