quarta-feira, janeiro 25, 2006

Servidão

A seguir, um bife da adaptação que fiz de Of Human Bondage, de W. Somerset Maughan, que será montada logo. O cartaz acima é do filme (lançamento em DVD?: eu não acho pra comprar) dirigido por John Cromwell, que tem no elenco Leslie Howard e a fantástica Bette Davis.

Philip
O que eu aprendi? Aprendi a olhar para as mãos das pessoas, coisa que nunca fazia antes. Aprendi a não olhar apenas para as casas e para as árvores, mas olhar para elas tendo o céu como fundo. E também aprendi que as sombras não são pretas: elas são coloridas. Pode parecer bobagem. Mas é muito. É até demais para quem teve que crescer sem ter ao lado aquilo que a maioria dos seres humanos, até os seres humanos mais sujos, merecem ter: um amor desinteressado. Quando disse isso pro meu tio, depois do enterro da minha tia, ele olhou pra mim e falou: - “Você acha que é muito esperto, não é”. Foram eles que me criaram, mas não, acho que não era nada disso. Palavra de honra que, se eu não fosse uma pessoa volúvel, já teria me enforcado há muito tempo. É. Não era nada disso. Creio que as coisas são do jeito que um poeta bêbado e fracassado me disse certa vez. O mundo está aqui para, a cada dia que passa, ser visto de uma maneira diferente. Se somos artistas e conseguimos impor nossa visão ao mundo, se conseguimos mostrar que Cristo é amarelo, ou que as sombras são coloridas, as pessoas vêm e nos dizem: - “Puxa, mas você é mesmo genial”! Mas, se não conseguimos nada disso, aquela mesma pessoa que ia te cumprimentar pelo fato do seu Cristo ser amarelo vai te ignorar. É isso. Mas nós, por dentro, continuamos do mesmo jeito. O que é um artista? É um sujeito como qualquer outro. Cheio de ilusões, de fraquezas, paixões, ódio, amor. Só que um artista... ele não dá conta de viver sem aquilo que faz. Por ele, o mundo pode acabar, (aponta para o caixão que subiu) que ele não se importa. Vai continuar pintando seu quadro, escrevendo seu livrinho. Mesmo que a maioria das pessoas não gaste nem trinta segundos na frente desse quadro, ou que ninguém leia as bobagens que ele escreveu. Ele vai continuar escrevendo, pintando, atuando, como se isso fosse a coisa mais importante do mundo. O artista, um artista verdadeiro, não sabe se é genial ou se é medíocre, porque ele não se importa com isso. Tanto faz. É que ele não vive sem aquilo que faz. É por isso que eu sou volúvel. E é porque sou volúvel que desisti daquela idéia de ser artista. Percebi que eu era medíocre. E, se eu era medíocre, então, não podia ser um artista. Assim, desisti. Até meu tio, que quando eu disse que queria ser artista olhou pra mim e resmungou: - “Olha, Philip, isso nunca deu futuro a ninguém”! Pois até meu tio achou ruim comigo: - “Dá pra perceber que lhe falta firmeza, que você nunca vai ser nada na vida. Também, com esse pé”. Meu tio estava zangado comigo por eu ter percebido que eu era medíocre e não querer ser mais um artista. Por isso falou do meu pé. Todo mundo, quando se zanga comigo, lembra-se do meu pé torto. Como se isso fosse novidade pra mim. Mas eu não ligo: continuo com minha máxima. E sabe qual é minha máxima? “Segue teus instintos levando na devida conta o guarda da esquina”. Isso não é uma grande verdade? Então, não liguei pro que meu tio disse e saí de cena, arrastando meu pé eqüino.

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