sexta-feira, janeiro 27, 2006

O que o senhor vê com os vossos olhos...... Eu vejo com os meus

A seguir, um trecho de meu texto Quando você não está no céu, em fase de montagem pela Odeon Companhia Teatral (direção de Carlos Gradim), que deve estrear em breve. O Capiau será interpretado por Geraldo Peninha. Trata-se, creio, de uma parte especial do diálogo entre o Doutor e o Capiau. Especial porque cito Dante e Rosa em ambigüidades.
Luz acontece. Doutor e capiau vêm andando. Param à beira de um abismo ao se deparar com uma bela vista.

Doutor
E aqui, o que é?

Capiau
As visões, dotorim. As visões.

Doutor
Nunca vi uma coisa assim. É mesmo obra Dele.

Capiau
Missassim. Missassim. E há algo que não seja Sua obra? Obra, ardil, ação Daquele que governa os altos e os baixos. Ação do Quem, do Cujo, do santificado pelo Outro.

Doutor
De quem você está falando, rapaz? Dizendo.

Capiau
Ora, de quem! Do Ele.

Doutor
Mas ele quem?

Capiau
De quem o dotorim crê que é?

Doutor
Dele. Do que criou esta paisagem maravilhosa.

Capiau
Maravilhosa, dotorim?

Doutor
Sim, maravilhosa! Ou você já viu algo maior e bonito? Beleza igual? Talvez até o paraíso. Já sei: está acostumado com tudo isso. É daqui, pertence ao lugar.

Capiau
Pertenço ao lugar ou o lugar me pertence? Anda, dotorim. Responde logo: Pertenço ao lugar ou o lugar me pertence?

Doutor
Veja, rapaz. As cores. A exuberância de paisagem. O indefinível.

Capiau
Missassim. Missassim, dotorim. O indefinível, as cores.

Doutor
Agora, acho que você está me entendendo.

Capiau
Pois já entendi desde mesmo muito antes, dotorim. Mas é o senhor mesmo quem tem que entender os significantes de sua voz. Ai aí, dotorim. Ai aí.

Doutor
O quê?

Capiau
Ai, então, dotorim. Onde o senhor vê umas cores, pode ser que outros vejam outras. As cores, o exuberante, o indefinível. O mundo se inventa a toda hora.

Doutor
Mas o quê? Vai lá. Anda logo. Estou muito cansado e quero descansar.
Já se sentando.
O que é que você quer dizer com isso?

Capiau
O dotorim já tá se espichando. Fatigas, não? Mas antes da folga, responda-me o senhor uma coisa.

Doutor, já se deitando e bocejando.

Capiau
O que o senhor vê?

Doutor
Ora, eu o que vejo são as paisagens ingentes, os Buritis-Altos, criatura de belezas, amor com amor. Lá embaixo, já vi. O rio com croas de areia, cada qual com seu nome. Nada se esconde de mim. Lá embaixinho, três croas e uma ilha. Ilha de terra, na parte de baixo, com grandes pedras e árvores, e suja de matinho, capim, o alecrim viscoso remolhando suas folhagens nágua. As belezas, rapaz. As vazantes.

Capiau
Pois então, dotorim. Onde o senhor vê as paisagens da terra, sabe o que vejo?

Doutor
Bocejando e já quase dormindo.
O quê, rapaz? O quê?

Capiau
Vejo um teatro. Uma platéia. Estamos na beira do abismo, dotorim. E, lá embaixo, só o que vejo são as gentes. As gentes e suas dores, seus vícios, seus pecados. As cores confundem, dotorim. E exuberância vige é dentro de cada um. O isto aqui foi Ele quem criou. Mas também sou eu. Em cada tapera lá embaixo, cada casa, cada rosto. O que o Senhor vê com os vossos olhos, dotorim, eu vejo com os meus. Mais tormentos e mais atormentados, aonde me mova ou volva minha aflita vista me surgem por todos os lados. Vejo só chuva. Eterna chuva, gélida e pesada que em monótono ritmo precipita. Grosso granizo, neve, água inquinada pelo ar tenebroso se reversa. Fede a terra por eles encharcada. Ai aí, dotorim. Ai aí.

Silêncio. O capiau vai até o doutor e vê que ele dormiu.

Capiau
Silenciosíssimo.
Psiu.
Psiu: Ele dormiu

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Servidão

A seguir, um bife da adaptação que fiz de Of Human Bondage, de W. Somerset Maughan, que será montada logo. O cartaz acima é do filme (lançamento em DVD?: eu não acho pra comprar) dirigido por John Cromwell, que tem no elenco Leslie Howard e a fantástica Bette Davis.

Philip
O que eu aprendi? Aprendi a olhar para as mãos das pessoas, coisa que nunca fazia antes. Aprendi a não olhar apenas para as casas e para as árvores, mas olhar para elas tendo o céu como fundo. E também aprendi que as sombras não são pretas: elas são coloridas. Pode parecer bobagem. Mas é muito. É até demais para quem teve que crescer sem ter ao lado aquilo que a maioria dos seres humanos, até os seres humanos mais sujos, merecem ter: um amor desinteressado. Quando disse isso pro meu tio, depois do enterro da minha tia, ele olhou pra mim e falou: - “Você acha que é muito esperto, não é”. Foram eles que me criaram, mas não, acho que não era nada disso. Palavra de honra que, se eu não fosse uma pessoa volúvel, já teria me enforcado há muito tempo. É. Não era nada disso. Creio que as coisas são do jeito que um poeta bêbado e fracassado me disse certa vez. O mundo está aqui para, a cada dia que passa, ser visto de uma maneira diferente. Se somos artistas e conseguimos impor nossa visão ao mundo, se conseguimos mostrar que Cristo é amarelo, ou que as sombras são coloridas, as pessoas vêm e nos dizem: - “Puxa, mas você é mesmo genial”! Mas, se não conseguimos nada disso, aquela mesma pessoa que ia te cumprimentar pelo fato do seu Cristo ser amarelo vai te ignorar. É isso. Mas nós, por dentro, continuamos do mesmo jeito. O que é um artista? É um sujeito como qualquer outro. Cheio de ilusões, de fraquezas, paixões, ódio, amor. Só que um artista... ele não dá conta de viver sem aquilo que faz. Por ele, o mundo pode acabar, (aponta para o caixão que subiu) que ele não se importa. Vai continuar pintando seu quadro, escrevendo seu livrinho. Mesmo que a maioria das pessoas não gaste nem trinta segundos na frente desse quadro, ou que ninguém leia as bobagens que ele escreveu. Ele vai continuar escrevendo, pintando, atuando, como se isso fosse a coisa mais importante do mundo. O artista, um artista verdadeiro, não sabe se é genial ou se é medíocre, porque ele não se importa com isso. Tanto faz. É que ele não vive sem aquilo que faz. É por isso que eu sou volúvel. E é porque sou volúvel que desisti daquela idéia de ser artista. Percebi que eu era medíocre. E, se eu era medíocre, então, não podia ser um artista. Assim, desisti. Até meu tio, que quando eu disse que queria ser artista olhou pra mim e resmungou: - “Olha, Philip, isso nunca deu futuro a ninguém”! Pois até meu tio achou ruim comigo: - “Dá pra perceber que lhe falta firmeza, que você nunca vai ser nada na vida. Também, com esse pé”. Meu tio estava zangado comigo por eu ter percebido que eu era medíocre e não querer ser mais um artista. Por isso falou do meu pé. Todo mundo, quando se zanga comigo, lembra-se do meu pé torto. Como se isso fosse novidade pra mim. Mas eu não ligo: continuo com minha máxima. E sabe qual é minha máxima? “Segue teus instintos levando na devida conta o guarda da esquina”. Isso não é uma grande verdade? Então, não liguei pro que meu tio disse e saí de cena, arrastando meu pé eqüino.

Escrita Infernal

Maria Lutterbach

Foi tardiamente que o escritor Edmundo de Novaes Gomes descobriu que ia morrer.

Não é que ele fechasse os olhos para a inevitabilidade do fim, mas, consumido pelo trabalho como publicitário, jornalista e, depois, professor, demorou um pouco a se lembrar que a morte chegaria um dia e que era tempo de fazer alguma coisa para si.

A tal “coisa” foi o livro “Falar”, “uma novela chata e pesada”, na descrição de Edmundo, que ganhou, em 2003, o Prêmio Casa de Cultura Mario Quintana, de Porto Alegre.
Depois de adaptar “Noites Brancas”, de Dostoievski, que foi para o teatro sob direção de Yara de Novaes, sua irmã, Edmundo assina agora um texto que tem como tema o inferno e que já está nas mãos do diretor Carlos Greradim para ganhar os palcos.
Desandou a escrever e nem pensa em parar. Relendo o texto sobre o inferno – que ainda não tem nome –, o autor percebeu algo que lhe havia escapado no processo de escrita.
“Vi que a minha grande preocupação ali diz respeito à adolescência porque meu filho, que está fazendo 16 anos hoje (ontem) está morando comigo. Pela minha insegurança em relação a isso, coloquei no texto drogas, um adolescente que se mata, uma paraplégica que sofre um acidente de carro. Porque, na realidade, quando escreve, você está mostrando sua alma”, diz.
A princípio com a idéia de se mirar no inferno da “Divina Comédia” de Dante para desenvolver seu texto, ele entendeu que tinha mais a dizer a respeito do inferno que paira entre nós, na terra, do que sobre aquele que estaria à espera dos pecadores no além.
“As pessoas ficam achando que o inferno é um lugar ruim, mas não é. O inferno é um lugar de muita justiça. O inferno do Dante é de uma justiça terrível, o meu não porque tem muita sacanagem, muita putaria. O inferno de Dante está debaixo de Jerusalém e o meu inferno fica na Terra. São algumas cenas que você vê acontecendo”, conta.
Se a princípio o texto seria baseado em Dante, depois se transformou em um inferno próprio do escritor: “A composição de personagens lembra Dante, mas lembra também Guimarães Rosa. Eu coloco um médico que está visitando o sertão, com um capiau do lado. Você pode imaginar que é Dante e Virgílio, mas também pode ser o Guimarães Rosa e o Manuelzão. O cenário do sertão é um cenário infernal”.
De frente
Com uma postura pouco condescendente, Edmundo de Novaes Gomes não enxerga grandes movimentos na literatura mineira contemporânea: “Belo Horizonte é uma farsa nisso, sempre foi. As pessoas, para escrever, precisam sair daqui”. E ele, que acha uma maravilha morar no miolo da avenida Afonso Pena, diz que ainda sai.
“Ainda vou morar na avenida Nossa Senhora de Copacabana, no meio da muvuca. Eu gosto de gás carbônico”. Naquilo que escreve, não contemporiza e diz na lata o que tem que dizer, ainda que ofenda. Na opinião do autor, registrar no papel o que está à nossa volta faz as dores do mundo parecerem mais graves.
“A gente passa o tempo todo vendo pessoas com fome, pessoas traindo umas às outras. No ‘Falar’, as pessoas ficam ‘absurdadas’ com aquilo que acontece ali, de uma mulher querer matar um ex-marido, mas isso acontece todo dia com a gente. Estamos cercados de pessoas que vivem mal, de casais que são inteiramente incongruentes, sacanas uns com os outros e a gente acha que é tudo normal. Mas se você colocar isso na literatura, aí dá merda”.
Ciente de que agride ao expor suas observações em palavras, Edmundo reafirma que não delata nada a mais do que aquilo que já está exposto:
“No livro ‘Por Onde Andam Meus Sapatinhos’ (seu segundo livro infanto-juvenil que deve ser lançado no ano que vem), tem um capítulo em que um menino da favela não entrega um papelote de cocaína e leva um tiro na mão. Eu estava numa roda de pessoas que fazem mestrado e doutorado, e elas falaram que era uma literatura infantil by Edmundo. E aí eu saquei como a gente é falso e hipócrita. As pessoas se sentem muito agredidas com a forma que eu escrevo e algumas falam que sou pornográfico. Mas sou uma pessoa careta, trabalho de sol a lua e até parei de beber”.
Revolução? “Não, é porque eu não quero morrer”.
-Jornal "O Tempo", Sexta-feira, 26 de agosto de 2005